domingo, 5 de agosto de 2012

A guerra fora do campo de batalha

Entrevista
Como veículos não tripulados podem mudar nosso cotidiano
RESUMO

Em entrevista à Folha, a professora da Universidade Harvard, Gabriella Blum defende que os "drones", veículos não tripulados, serão utilizados pela sociedade civil dentro de pouco tempo. Muito usados em atividades militares, as engenhocas serão utilizadas na forma de brinquedos, aspiradores de pó e na vigilância policial.
O futuro é dos "drones", e o futuro está muito mais perto do que você imagina. A palavra que define os veículos não tripulados, operados remotamente no ar, na terra ou na água, foi roubada do inglês (significa "zangão"). Hoje eles são produzidos em pelo menos 45 países, inclusive no Brasil.
Antes exclusivos do arsenal militar, começam a migrar para o cotidiano na forma de aspiradores de pó, brinquedos e sistemas de vigilância policial. E, em um futuro próximo, talvez na forma de aranhas que poderiam matar você no banheiro de sua própria casa.
A sorrateira aranha -a assassina perfeita, que não deixa pistas e oculta o mandante- é uma imagem exagerada que a professora de leis humanitárias Gabriella Blum, da Universidade Harvard, criou para sublinhar que esse tipo de robô não está mais confinado às operações contrainsurgentes conduzidas pelos americanos no Afeganistão e no Paquistão.
Especialista em legislação de conflitos armados e operações de contraterrorismo, a pesquisadora israelense alerta que a banalização dos drones não só vai embaralhar as leis da guerra, mas também a vida em sociedade, ao transformar qualquer indivíduo em mini-Exército potencial.
O cenário que Gabriella desenha no ensaio "Invisible Threats" (ameaças invisíveis, leia em bit.ly/invisiblethreats) tem as cores sombrias de "Blade Runner" (1982), com o perturbador agravante de soar mais iminente e verossímil.
Diferentemente do filme de Ridley Scott no qual Harrison Ford vive um caçador de androides, o ensaio trata de fatos já em curso, que podem alterar nosso modo de convivência, com a disrupção do contrato social e a ascensão de uma sociedade de todos contra todos.
Adaptar regras e leis a essa realidade, diz Gabriella, será tarefa custosa e sempre em atraso, já que a tecnologia avança mais do que nossa capacidade de regular.

Gabriella concedeu à Folha, por telefone, a entrevista a seguir. 

Folha - Estamos preparados para os drones em nosso dia a dia?
Gabriella Blum - Preparados ou não, é a realidade. Como sociedade, não estamos. Ainda pensamos em drones como algo da esfera militar, associamos a algo com o Paquistão ou o Iêmen, uma coisa de zona de guerra, operada pelo governo.
Estamos longe de aceitar que será uma parte mais endêmica da vida. Mas a polícia de Nova York já fala em drones para vigilância. Na internet, no site diydrones.com, você pode comprar um drone ou aprender a fazer um. Veremos gente usando como brinquedo, e talvez isso nos conscientize. 

No nosso imaginário, a evolução da robótica nos levaria a um cenário como o de "Blade Runner". Essa era a "ameaça". O que faltou ao debate?
Seja com a internet ou com o fogo, toda tecnologia tem uso para o bem e para o mal. Toda vez que uma delas surge, surgem visões do fim do mundo. Isso não é razão para temer a evolução tecnológica, já que os benefícios tendem a ser maiores que os riscos, e essas visões raramente se concretizam.
Com a robótica é assim. O que falta ao debate, sobretudo no caso dos drones, é entendermos que isso não é mais questão do governo. Como a internet e a bioengenharia, não é algo de que o governo seja dono ou sobre o que exerça monopólio. A tecnologia existe para todos. 

Por que nos falta essa consciência?
As pessoas não foram expostas a outros usos [além do noticiário de guerra]. É preciso saber que drones não são algo que o governo fabrica, mas que é desenvolvido por empresas privadas e comprado pelo governo; é preciso saber que há drones à venda na internet; que as universidades dos EUA e de outros 44 países estão trabalhando para desenvolvê-los com propósitos benéficos -o que nos traz de volta a questão do duplo uso.
Veja a aplicação na vigilância. Eles podem ser usados para perseguir terroristas e criminosos, ou para ONGs rastrearem refugiados. Só que o público não nota como isso ficou comum e ficará mais ainda. 
 
Seria possível regular um mercado como o de drones?
A regulamentação é complicada porque se dá em dois eixos. O primeiro é a questão de política. Veja o caso da internet. Queremos liberdade de informação, sem censura. Ao mesmo tempo, tememos as consequências da liberdade total, ameaças à segurança e à proteção da propriedade intelectual.
No caso dos drones, podemos não gostar que a polícia de Nova York nos vigie como um "grande irmão", mas é bom que ONGs possam usá-los com propósito humanitário. As regras teriam que equilibrar valores concorrentes que prezamos como democracia.
O segundo eixo é a velocidade. A tecnologia sempre avança mais rápido do que qualquer regulamentação, fazendo com que, no momento em que a regulação esteja pronta, ela se torne obsoleta.
Além disso, sempre há brechas: se houver uma lei para drones vigilantes, ainda poderemos comprar um de brinquedo e acoplar uma câmera. É algo difícil de policiar. 

Seu ensaio afirma que o conceito de soberania mudará. A banalização dos drones dificultará a adaptação dos Estados aos atores não estatais?
É uma ameaça, e não acho que seja debatida ou pensada como deveria. O 11 de Setembro modelou o discurso nos EUA. Passamos a discutir paradigmas, guerra vs. crime, território vs. extraterritório, doméstico vs. internacional, cidadão vs. estrangeiro. O terrorismo transnacional borrou essas categorias. Não só ele, mas o mundo cibernético, o comércio, as pandemias.
A forma certa de pensar nos drones é como tecnologia de poder às massas, que permite a grupos e indivíduos desafiar o Estado com meios que antes eram monopólio de outros Estados. Isso dissemina ameaças e vulnerabilidades. Todo indivíduo será uma ameaça potencial e potencialmente vulnerável. 

Seremos mini-Exércitos.
Sim. Pense no Estado. Se você olhar [Thomas] Hobbes [1588-1679], a ideia é que há um contrato social pelo qual os indivíduos, para se preservarem do estado de natureza, da anarquia, abdicam do direito de usar poder e o transferem ao governo, que os protege de si mesmos e de ameaças externas.
Os países têm hoje diferentes graus de sucesso nessa proteção. A preocupação com esse nível de poder às massas é que o governo precisará proteger as pessoas de muito mais fontes potenciais de ataque. É mais fácil proteger um país de outros 200 do que proteger cada indivíduo dos outros 7 bilhões. 

Os drones vão permitir ferir ou matar sem ser identificado.
Sim, há contratendências. A tecnologia nos faz viver por mais tempo e melhor, e isso contribui para uma redução da violência e da agressão. Mas, se você distribui essas tecnologias pelo mundo ao mesmo tempo em que há um declínio do poder do Estado, a preocupação com a democratização da violência é real. 

Esse é o debate sobre a posse de armas nos EUA. Ele só vai piorar?
Os grupos de defesa dizem que a resposta às armas não é regulamentação, mas mais armas. Não creio que funcione. O caso das armas é um exemplo da dificuldade de regular. A ideia de balanço de poder pode ser entendida no contexto da Guerra Fria [1945-1991], com duas potências, simetria, mediadores. Mas não se o equilíbrio buscado é entre milhões de pessoas. 
 
O papel dos Exércitos vai mudar?
Acho que já está acontecendo. Há robôs sendo desenvolvidos para servir na infantaria, fazer remoções médicas. Mas há perguntas sobre até que medida uma máquina pode substituir um ser humano na tomada de decisões e em que momento é preciso que um ser humano avalie uma ação destrutiva.
Veremos uma demanda crescente nas Forças Armadas por gente com conhecimento em tecnologia. Mas muitas outras funções serão executadas por máquinas. Uma ideia a ser evitada é a de que poderemos resolver nossas guerras com máquinas. Para vencer uma guerra, é preciso causar dor, e, para causar dor, é preciso matar gente, não destruir máquinas. Isso vai trazer as bases domésticas para a linha de frente e embaçar distinções entre civis e combatentes. Os conceitos terão de ser revistos, sobre conflito, inimigo, alvos legítimos e mesmo violência em geral. 

Pode haver ascensão, da parte dos Estados, de regras de combate definidas no meio do jogo, como na chamada Guerra ao Terror?
Acho improvável um acordo internacional sobre uso militar dessas máquinas. O que vejo são duas tendências opostas. Uma é a maior cooperação entre nações, porque será preciso localizar indivíduos, e fica turva a jurisprudência.
Vejo maior cooperação porque as fronteiras serão ainda menos relevantes, e, ao mesmo tempo, mais ações unilaterais -quando não houver cooperação, os países mais fortes agirão sozinhos.
Nas guerras, acho que veremos uma evolução a um policiamento mais agressivo. Não deve haver mais um coletivo anônimo de uniforme que você possa identificar. Será preciso investir em inteligência para saber quem está por trás de um ataque e então ir atrás. 

Isso já ocorre?
Um pouco no mundo cibernético, quando o governo tenta perseguir um grupo como o Anonymous [de hackers] e pegar um membro para revelar os demais. E há a ascensão de grupos justiceiros. Surge uma nova forma de "justiceiros comunitários", cada vez mais cidadãos tentam fazer o papel do governo [em segurança]. Isso é perigoso. 

A sra. lista usos positivos dos drones. Por que descrever o pior cenário?
Isso é apocalíptico, mas não inimaginável. Abro o ensaio com a aranha porque queria humanizar o cenário. Para passar a mensagem de que não é uma ação do governo no Paquistão, que não vai afetá-la porque você não é um terrorista na Somália, mas algo que será parte inerente das nossas vidas.
Não que eu ache que todos entraremos no banheiro e encontraremos aranhas-robôs assassinas. Mas em alguns anos estaremos cercados de drones que farão coisas maravilhosas, mas que poderão fazer coisas horríveis.
A discussão é o que isso vai mudar fora do campo de batalha e o que significa viver cercado por essas máquinas. 
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Reportagem por  LUCIANA COELHO
Fonte: Folha on line, 05/08/2012
Imagem da Internet 

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