sexta-feira, 17 de agosto de 2012

A injusta noção de justiça de Pondé

Paulo Ghiraldelli Jr*

 
O professor Luís Felipe Pondé acredita que antes reagimos para salvar nosso cotidiano que nos mobilizamos para mudar as coisas por termos ouvido o clamor pela justiça em algum lugar.[1] Essa ideia é aparentemente verdadeira. Todos os dias nós escutamos algum grupo pedir justiça em algum canto da Terra e nada fazemos, mesmo quando podemos fazer alguma coisa. No entanto, mesmo que o nosso dia-a-dia seja um tédio ficamos deveras revoltados, e vários entre nós se comprometem com ações radicais, se esse cotidiano é ameaçado. O erro de Pondé está em acreditar que justiça seja uma coisa e reclamar do cotidiano fustigado ou desfeito é outra coisa. Não é.
Na maioria das vezes os grandes discursos que teorizam e/ou clamam por justiça não nasceram senão do cotidiano ameaçado, efetivamente ou como uma possibilidade. Ninguém vira fera pelo cotidiano ameaçado excluindo a possibilidade de, junto da ira, criar sofisticadas narrativas a respeito da história dos que se levantaram por justiça. Uma boa parte dos que viram fera não deixa de lado a oportunidade de chamar a filosofia para justificar o levante por justiça bem como a própria noção de justiça. Pondé parece desconhecer esse nexo e então ele acaba por acreditar que as grandes filosofias que pediram justiça social ou pregaram algum igualitarismo eram falsas, até mentirosas. Sem dúvida que isso é um erro.
O erro advém exatamente de Pondé não levar a sério a base da filosofia ocidental, ou seja, Platão. Foi com Platão que criamos filosoficamente o nosso primeiro grande tratado sobre a justiça – A República. Ora, por qual razão Platão quis colocar ali a descrição de uma cidade justa? A resposta é simples e clara, admira-me de Pondé não tê-la levado em conta: salvar o cotidiano. O nosso primeiro grande tratado de filosofia e, enfim, nosso primeiro livro completo de filosofia no Ocidente tem como objeto a justiça e esta, por sua vez, não é outra coisa senão o dispositivo pelo qual a vida pode ser a mais ordinária possível – tão ordinária que identificada antes com um sistema de castas que de classes, ou seja, a de uma sociedade com o menor número de mudanças possíveis.
Platão não escreveu A República como quem pinta um quadro e quer vê-lo exposto de modo a criar frenesi nos frequentadores de galerias. Platão não escreveu uma poesia para ser declamada, fazendo nobre e plebeus caírem em prantos. Platão não falou da justiça como quem usa da retórica do modo que usamos o vinho, para o deleite bêbado. Não há nenhum pedido de êxtase extraordinário que deve ser alcançado pela leitura de A República. É um livro em que a filosofia toda é construída, em todas as suas áreas futuras, de modo que a cidade que garante o cotidiano monótono seja a mesma coisa que a cidade justa. Justiça e monotonia do cotidiano se equivalem em Platão mais do que a noção banal de reparação, desenvolvida por outros filósofos. Nessa tradição de Platão estiveram Rousseau e Marx. Ambos falaram de utopia e revolução, coisa que Platão não falou. Mas Rousseau e Marx não falaram de revolução para se tornarem revolucionários ou para viverem como revolucionários. Mais do que quaisquer outros, eles foram amantes do cotidiano. No entanto, sabiam muito bem que eles próprios não teriam um cotidiano saudável (e não tiveram) em uma situação em que não se pudesse ter o que imaginavam como sendo justiça.
A cidade justa de Platão é a cidade em que as pessoas não fazem aquilo para o qual não estão vocacionadas. Ela é a cidade em que a divisão social do trabalho é garantida pela administração do Rei filósofo que, diferente do Rei comum, não escorrega para decisões que possam ser controversas entre as elites, fazendo-as divergir de modo a, no limite, criar partidos em guerra e provocar a própria guerra civil.  A guerra é a injustiça. A guerra civil é a injustiça à medida que é o fim do cotidiano. Rousseau e Marx pensaram exatamente assim, ao menos quanto a este tópico específico: a sociedade é boa quando ela não tem que tomar decisões importantes segundo um rumo incerto, capaz de provocar divergências que levam os seus cidadãos a seguirem os partidos das elites em um conflito que desestrutura a vida cotidiana.
Caso Pondé pensasse um pouco nesses meus termos, tenho certeza que ele mudaria de ideia. Pois não se sustenta nem um pouco a tese de que cotidiano calmo e discurso justiceiro são caminhos diferentes.
  
[1] Veja: Pondé. F. F. Contra um mundo melhor. São Paulo: Leya, 2010, pp. 146-7
------------------------------------
* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/2012/08/16/

Nenhum comentário:

Postar um comentário