sábado, 11 de agosto de 2012

A piedade invertida.

  Gianfranco Ravasi*

É necessária hoje uma "inversão da moeda" para atualizar as "obras de misericórdia" segundo as coordenadas da cultura e da sociedade contemporâneas, soprando para longe delas o pó da retórica moral tradicional e mostrando a sua dramática necessidade também para esta era tecnológica.



"Tu, ó Compaixão, és a única virtude! Todas as outras são virtudes usurárias": tão enfaticamente escrevia o Jacopo Ortis foscoliano [personagem do livro Ultime lettere di Jacopo Ortis, do escritor italiano Ugo Foscolo]. E é justamente a partir dessa exclamação que parte o renomado historiado da medicina Giorgio Cosmacini, entrelaçando-a com a análoga e igualmente apaixonada declaração do Idiota dostoievskiano, segundo o qual "a compaixão é a mais importante e talvez a única lei de toda a vida humana". Mas como enunciar hoje essa virtude que pode degenerar na mais destacada comiseração ou compaixão, mas também se abrir como um leque em um arco-íris de iridescências "filantrópicas" como a piedade, a misericórdia, a pena, a compreensão, a solidariedade, para ascender até a caridade, virtude teologal suprema?

Cosmacini optou por um antigo traçado de matriz catequética cristã, pontuado pelo célebre setenário das chamadas "obras de misericórdia corporal", moduladas substancialmente em uma passagem igualmente célebre do Evangelho de Mateus, em que Cristo se identifica com os miseráveis da terra: "Tudo o que fizeram a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram", e a lista inclui famintos, sedentos, estrangeiros, nus, doentes, presos (25, 31-46). Está ausente dessa lista somente a última obra misericordiosa ou compassiva, o "enterrar os mortos", que, naturalmente, nesse livro, aparece como coroamento do setenário. Onde está a originalidade do comentário do professor da universidade milanesa Vita-Salute San Raffaele?

"O retorno à compaixão é um antídoto à indiferença, 
é uma vacina à doença do isolamento egoísta, 
é a redescoberta daquela virtude sem a 
qual não somos nem Deus nem pessoa humana,
 isto é, o amor. "

A singularidade da sua análise está no fato de ter adotado o que o autor chama de "inversão da moeda" que, paradoxalmente, atualiza as "obras" segundo as coordenadas da cultura e da sociedade contemporâneas, soprando para longe delas o pó da retórica moral tradicional e mostrando a sua dramática necessidade também para esta era tecnológica.

Assim, o ato de "dar de comer aos famintos" não é mais apenas o sempre angustiante contraste – como escrevia Chamfort no século XVIII – entre "aqueles que têm mais comida para comer do que apetite e aqueles que têm mais apetite do que comida para comer", mas se torna também a atenção para a devastação que a obesidade introduz e, se quisermos, a descida aos infernos da bulimia (ou do seu antípoda especular, a anorexia).

O "dar de beber aos sedentos" pode se transformar na luta contra o alcoolismo, na consciência daquilo que escrevia o alcoólatra Fitzgerald com um irresistível trocadilho inglês que não precisa de tradução: "First you take a drink, then the drink takes a drink, then the drink takes you".

E "vestir os nus", como se dizia na obsoleta linguagem do catecismo, o que tem no seu outro lado? É fácil pensar naquela moda tão invasiva e provocante que – para recorrer novamente a uma auctoritas do passado, como o autor inglês William Hazlitt – confirma cada vez mais um resultado desconcertante: "Aqueles para os quais a roupa é a parte mais importante da pessoa acabam valendo, em geral, tanto quanto a sua roupa" (como se diz nos seus Political Essays). Em suma, por debaixo da roupa, nada. E às vezes já a roupa é um nada têxtil também.
Como se vê, na nossa lista, adotamos uma constante, o recurso à citação temática. Fizemos isso também para evocar o corte que torna agradável o texto de Cosmacini . De fato, ele incrusta as suas análises com um caleidoscópio de referências históricas, literárias, folclóricas, documentais, naturalmente aportando também no registro da atualidade, convencido, no entanto, de que, nas palavras de Carlo Levi, "o futuro tem um coração antigo".

Propomos, então, as suas outras "inversões da moeda", relativos aos últimos componentes do setenário das obras de compaixão. "Hospedar os peregrinos" tem o seu ardente imediatismo em "não rejeitar os imigrantes". A este propósito, vale a pena recordar que não é um parágrafo de uma lei escandinava esta norma: "Quando um imigrante habitar com vocês no país, não o oprimam. O imigrante será para vocês um concidadão: vocês o amarão como a si mesmos". Trata-se, no entanto, de uma afirmação do código hebraico bíblico presente no livro do Levítico (19, 33-34).

"Visitar os doentes" é reproposto não segundo uma tabela de horários ou de embaraçosos discursos no leito do enfermo, mas sim segundo a modalidade do diálogo, em particular do diálogo entre médico e paciente, através de uma aliança em que técnica e humanidade se cruzam.

Por fim, as duas últimas obras de misericórdia ou compaixão levantam hoje complexas questões sociais, jurídicas e morais. Os presos se tornam um apelo a "não acrescentar novas penas à punição", como infelizmente acontece em muitas prisões onde a superlotação quase animalesca elimina qualquer resíduo de dignidade ao condenado. E "enterrar os mortos" hoje abre o capítulo muito delicado e dilacerante do ato de "respeitar a dignidade dos moribundos".

Exatamente da lista que elencamos se deduz como não está nada superada a lição catequética antiga. Certamente, Cosmacini faz intuir nas entrelinhas a sua opção cristã, mas o seu discurso conserva o sopro de uma humanidade e de uma sabedoria universal.

Em um mundo ajoelhado diante do gélido ídolo da técnica, um suplemento de pietas, que é quente como a carne humana sofredora, é ainda mais necessário. O retorno à compaixão é um antídoto à indiferença, é uma vacina à doença do isolamento egoísta, é a redescoberta daquela virtude sem a qual não somos nem Deus nem pessoa humana, isto é, o amor. Justamente como Yeats se regozijava na emblemática The Pity of Love (1922): "Uma piedade inefável se esconde no coração do Amor" ("A pity beyond any telling / is hid in the heart of Love").

 Giorgio Cosmacini.  
Compassione. Le opere di misericordia ieri e oggi
Il Mulino, 2012.

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 *A análise é de Gianfranco Ravasi, cardeal presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 05-08-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 11/08/2012

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