sábado, 25 de agosto de 2012

Algumas crenças

LUÍS AUGUSTO FISCHER*

 

Numa série de entrevistas que fiz (e continuo fazendo, agora esparsamente) aqui para o Cultura, me apercebi logo do imenso papel que o cristianismo exerceu sobre as artes e humanidades, cá no sul do país. Dos 24 intelectuais que já participaram da série, em torno de metade deve sua formação e/ou sua atuação diretamente ao mundo católico ou protestante – vou lembrar os nomes de José H. Dacanal, Donaldo Schüler e Ernildo Stein. A outra metade, que congrega gente como os já falecidos Demétrio Ribeiro, Carlos Reverbel e Décio Freitas, se liga a tradições não-religiosas, leigas, ou melhor, materialistas no sentido filosófico.

Que peso terá a tradição cristã para o conjunto da cultura sul-rio-grandense? O assunto é espinhoso e pode gerar reações complicadas; mas vamos fazer de conta que dá para falar nisso serenamente. (Não estou pensando nas religiões cristãs recentes, ditas pentecostais, que também se baseiam, de alguma forma, na Bíblia, todas elas, porém, ao que vejo, indiferentes e até mesmo hostis ao trato intelectual exigente).

É certo que, no campo literário, os mais salientes dos escritores pouco ou nada devem à religião: pensemos nos casos de Simões Lopes Neto e Erico Verissimo, Mario Quintana e Aureliano de Figueiredo Pinto, Alcides Maya e Cyro Martins, Álvaro Moreyra e Josué Guimarães. Esses todos ou eram inimigos das regras religiosas e do poder católico (e luterano), ou ao menos escreveram e foram lidos por fora do circuito religioso, eventualmente enfrentando restrições de leitura em âmbitos governados pelas religiões cristãs antigas. A propósito, acho que ainda está por ser estudado o traço antirreligioso, não necessariamente ateu, da cultura gauchesca, que se lê claramente no centenário Contos Gauchescos. (Mas é verdade que, no tradicionalismo inaugurado no pós-Segunda Guerra, parecem ter influído alguns líderes com fé cristã sólida, assim como alguns princípios maçons.)

Que escritores e intelectuais podem ser inscritos nos quadros de alguma confissão religiosa, demonstrando crença que permaneça relevante depois do período de formação? Ficcionistas talvez não sejam muitos; entre os intelectuais haverá vários. E aqui talvez conviesse estabelecer uma diferença entre aqueles ligados ao mundo lusobrasileiro, de um lado, e aqueles nascidos no mundo teuto ou italobrasileiro, de outro. E nem falamos dos descendentes de africanos, nem dos judeus, grupos desiguais mas potencialmente muito ligados à religião. (Há algum papel relevante, na arte e nas ideias, de outra religião, cá no sul?)

Um clube difícil
Essas considerações meio vagas se devem a uma leitura que andei fazendo e interrompi, mas que retomo de vez em quando, aos goles como proporciona um livro de seu gênero. Trata-se do livro A Tarefa do Crítico, assinado por Terry Eagleton, notável crítico literário e professor inglês, e Matthew Beaumont, professor de literatura (tradução de Matheus Corrêa, Editora da Unesp, 2010). O livro é um conjunto de entrevistas do segundo com o primeiro, resultando num perfil de vida e pensamento muito interessantes, especialmente para quem, como eu, tem origem cristã, que é também o caso de Eagleton. Nascido em 1943, na classe média inferior, com avós irlandeses pelos dois lados e pais trabalhadores, que sonharam para os filhos um futuro mais elevado na escala social, o que seria obtido pelo estudo, Terry e suas irmãs são os primeiros da família a frequentar universidade.

Foi neste livro que li um comentário muito iluminador sobre o papel que a religião continua a exercer sobre um intelectual ou artista, mesmo que ele, na idade adulta, tenha abandonado as práticas e crenças de sua meninice ou juventude. Eagleton está respondendo a uma pergunta biográfica, “No final da década de 1960, você era menos cristão do que tinha sido no início?”, e se sai com esta: “Como disse George Steiner sobre o judaísmo, (a religião) não é um clube ao qual você possa facilmente renunciar em termos culturais”.

Bela síntese: o ambiente cultural de uma religião permanece forte na vida dos ex-crentes. (Pensemos na obra do Moacyr Scliar, que nada tinha de religioso, me parece, mas que frequentava o mundo judaico com intensidade e proveito. Apostaria algum dinheiro que na obra crítica de Augusto Meyer, também um não-crente, se podem rastrear pegadas cristãs.) Nosso tempo, marcado tão fortemente pela perda de força social das religiões nos campos intelectuais, artísticos e científicos, de alguma forma se mantém conectado com os vastos patrimônios construídos por civilizações inteiras.

O que fazer com essa realidade? Em um plano mais ou menos banal, constato regularmente que as novas gerações não mais dispõem de um razoável repertório de referências culturais que o cristianismo costumava oferecer, ou impor. Isso se vê não ao ler autores metafísicos, como Cecília Meirelles, mas Machado de Assis, um sólido cético, cuja obra é atravessada por infinitas alusões e citações à Bíblia e à cultura cristã. Tenho a sensação de que agora passamos, em relação a esse patrimônio, por um processo parecido ao do esmaecimento da cultura religiosa grega nos séculos medievais: ela perdeu vigência mas permaneceu ali, como um tesouro, acessível apenas mediante bom esforço intelectual para ultrapassar o interesse imediato.

Quantos são os professores de Literatura em atuação, em especial na região sul do Brasil, que devem sua formação ao mundo cristão? Não faz muito, estendi essa conversa com colegas e alunos: cristãos, assim como os fiéis de outras religiões letradas (as três grandes monoteístas, para não ir muito longe), se formam lendo e interpretando textos. Certo que há muitas restrições à liberdade de leitura, tão grandes quanto seja a ortodoxia envolvida; não importa: é no âmbito da disputa pela interpretação que se formam os leitores, e por aí se formam os críticos literários, os professores de literatura.

Não quero sacanear ninguém, mas também no âmbito marxista há restrições e ortodoxias de tipo religioso, que ao mesmo tempo exercitam os fiéis, os marxistas, e restringem seu raio de ação. Não à toa houve aproximações tão fortes entre marxismo e cristianismo, nos anos 60 e 70. E, bem, podemos abranger outras atitudes religiosas no mesmo processo: feministas, estruturalistas, desconstrucionistas, por aí vamos, por aí vão. Todas essas tradições contêm trajetórias bem parecidas, neste particular: formam seus seguidores lendo e interpretando, assim como fazendo restrições a determinados avanços de opinião.

(E entre os políticos? Valeria a pena investigar a força do aprendizado da retórica religiosa, aqui incluindo as religiões ditas pentecostais, na carreira dos políticos atuais. Também valeria a pena pensar sobre quão pouco letrados têm sido os políticos.)

Credulidade e cotidiano

O livro de (com) Eagleton traz incontáveis trechos relevantes, embora nem sempre com a minha irrelevante concordância. Bem no começo, diz ele que é provável que o traço católico tenha feito dele um crédulo. Pergunto eu: não precisa ser crédulo todo professor de Literatura, no sentido de considerar (e de querer que os alunos igualmente considerem) que os livros ajudam a viver melhor, a fazer do mundo um lugar mais decente?

Em outra passagem, ele defende que foi o cristianismo o inventor da ideia da vida cotidiana, ou melhor, “a ideia de que o cotidiano é uma esfera vital”. Grande palpite, não sei se verdadeiro, mas com cara de sê-lo: tomado como uma das grandes narrativas do mundo, sucedendo ao Grande Relato Grego (mais que o Romano), o cristianismo de fato prestigia a vida comum, porque acolhe o homem trivial, que pode ser salvo, sem precisar ter nascido em certa comunidade, nem ser tocado por graça especial.

Isso não diminui a presença do trágico, no âmbito cristão, para ele. Os grandes eventos dessa tradição carregam traços do trágico, e a história de Jesus, em especial: ela não tenderia ao heroico, como era o caso do mito épico grego, embora seja referencial para a vida de todos os fiéis e reencenada em cada missa.

Lembrei, de passagem, do irreverente cristão cultural que foi Paulo Francis, a dizer que o desfecho da trajetória de Jesus foi o primeiro happy-end da história, precedendo em séculos os filmes americanos. (Ei: o Francis foi reeditado, com qualidade, num livro imperdível, Diário da Corte, com organização de Nelson de Sá, para a editora Três Estrelas, 2012.) (Ei 2: ia esquecendo de anotar que saiu novo livro de Steiner em português: Tigres no Espelho, textos dele para a revista The New Yorker. Tradução de Denise Bottmann, editora Globo, 2012. Sim, o senhor acertou: o ensaio do título é sobre Borges, publicado em 1970.)
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*  Prof. Universitário. Escritor. 
Fonte: ZH on line, 25/08/2012

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