domingo, 12 de agosto de 2012

Contra a mediocridade


Rodrigo Moraes*




 
Fiquei matutando sobre o que Paulo Coelho, o escritor brasileiro mais conhecido mundialmente, disse sobre Ulysses, de James Joyce: “Fez mal à literatura”. O comentário (assunto da capa da edição de hoje do Caderno C) se refere ao fato da monumental obra, ao fugir de todos os cânones literários estabelecidos até a data de seu lançamento — em capítulos, entre 1918 e 1920 — ser, na opinião do autor de Brida e membro da Academia Brasileira de Letras, mais um exercício de estilo do que algo que prima pelo conteúdo.

Não li Ulysses, nem sei se um dia vou me aventurar por suas páginas. Li a respeito da obra, ouvi comentários de gente que leu e já passei os olhos por um exemplar: encará-la deve ser o equivalente literário de se subir ao Everest. Não sei se James Joyce queria impressionar seus pares — como disse Coelho — engendrando uma narrativa centrada em um único dia, que mais se assemelha a uma torrente de pensamentos e ideias e que exige uma concentração hercúlea do leitor, cuja tendência, na maioria dos casos, é abandonar o volume logo nas primeiras páginas.

Segundo o raciocínio de Paulo Coelho, Ulysses não fez favor nenhum em ajudar a popularizar a literatura (e de popularidade o autor brasileiro entende). Obviamente essa não era a intenção de James Joyce, que poderia, sim, estar munido de um bocado de vaidade e de um outro tanto de pretensão ao conceber a obra, um legítimo anti-best seller. Ulysses é um experimento radical, petulante. E necessário. Dizer que o irlandês e sua obra fizeram mal à literatura é o equivalente a dizer que vanguardistas como Stockhausen ou John Cage fizeram mal à música.

Também nunca me dispus a ouvir nenhuma das obras desses compositores. Deve, francamente, ser um exercício igualmente penoso, mas elas são fundamentais. Popularizaram a música? De maneira alguma; o seu papel (assim como o de obras como Ulysses) é de outra natureza: explorar os limites e possibilidades da arte.

Negá-las ou diminui-las, reduzi-las a um mero capricho de seus autores é menosprezar a própria capacidade do homem de criar.

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Nunca tinha lido William Faulkner (1897-1963), o autor de O Som e a Fúria. Conhecia sua fama de “autor difícil”, daqueles cujo estilo se impõe como um desafio para o leitor. Em O Intruso (Ed. Benvirá, 268 págs., tradução de Leonardo Fróes), Faulkner conta uma história ambientada no racista sul dos Estados Unidos dos anos 1940. A trama é simples: garoto branco de 16 anos se dispõe a desenterrar um cadáver para provar a inocência de um negro, ameaçado de linchamento. O autor, no entanto, interpõe — como é de seu feitio — à narrativa linear longos períodos sem pontuação, repletos de parênteses explicativos, divagações — e outros elementos que seguem aquilo que se convencionou chamar de “fluxo de consciência” — para nos oferecer um retrato psicológico do protagonista.

Não é, absolutamente, uma leitura fácil. Muitas vezes tive que voltar algumas páginas para tentar reencontrar o fio da meada que larguei ao fechar o volume na noite anterior. O esforço, no entanto, compensa: as imagens, paisagens mentais quase abstratas que Faulkner cria com as palavras é de uma beleza que custa a se revelar, mas que acaba por se impor, como se subitamente descobríssemos a beleza escondida em uma estepe gelada e árida para a qual ficamos olhando por horas a fio.

Não é, enfim, um autor que entrega de bandeja aquilo que o leitor espera para poder se distrair e passar o tempo; é um autor que exige cumplicidade e comprometimento de quem o lê.

Gostar disso ou não é uma questão estritamente pessoal. Mas classificar a obra de artistas (seja Joyce, seja Faulkner, seja quem for) como fruto de mero “exibicionismo” é um ato, no mínimo, irresponsável.
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* Jornalista.
Fonte: Correio Popular on line, 11/08/2012
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