sábado, 11 de agosto de 2012

Liberdade: entre iluminismo e romantismo

Paulo Ghiraldelli Jr.

 
O século XVIII defendeu a liberdade do indivíduo e sua prerrogativa de mudar o mundo. O Iluminismo foi o movimento filosófico que acolheu esse tipo de pensamento. O seu parceiro político foi o liberalismo clássico, do século anterior. O século XIX defendeu que o mundo poderia chamar de volta o indivíduo aos seus compromissos com as instituições, redefinindo assim a noção de liberdade, realizada então antes na vida comunitária que contra ela. O Romantismo foi o movimento filosófico que acolheu esse tipo de pensamento. O seu parceiro político foi o comunitarismo, do século posterior.  O padrinho do século XVIII foi Kant, o do XIX foi Hegel.
Esses embates só atualmente estão claros e bem explicitados para nós. Foi preciso criar histórias do capitalismo, do socialismo, do “fim do humanismo”, do “fim da história”, dos embates entre “modernidade versus pós-modernidade” para chegarmos a reconhecer que, ao menos no Ocidente, tudo isso nunca foi outra coisa que subcapítulos dos dilemas entre Iluminismo e Romantismo ou, dizendo de modo específico, a história da compreensão da liberdade.
Há pessoas que acreditam que o reino da liberdade e o reino da necessidade não podem se cruzar. São neokantianos, querendo ou não. Todavia, são neokantianos às vezes contra Kant. Não levam em consideração que a liberdade e a necessidade acabam se cruzando no âmbito da vida dos bípedes-sem-penas. Nós somos os que, em nós mesmos, trazemos o pertencimento aos dois reinos simultaneamente. Em termos kantianos, enquanto viventes no mundo empírico somos os que estão em elos causais que nos empurram para lá e para cá. Enquanto pensantes, somos quem lida com elos da razão, que não são determinados pelo mundo empírico e, sim, pela lógica que estaria embutida em nossa mente, sendo capazes de, no âmbito moral, decidirmos pelo certo e pelo errado independentemente das relações causais.
Há pessoas que acreditam que o reino da liberdade está imiscuído no reino da necessidade. Podem ser neohegelianos. Pensam que as relações causais são apenas uma faceta de relações que são exclusivamente racionais – lógicas. Entendem então que cada um de nós vive comunitariamente e que os laços comunitários que parecem nos prender são, enfim, se temos consciência deles, justamente o que nos permite agir com a máxima liberdade que podemos. Temos de agir de modo racional uma vez que o mundo tem sua racionalidade inerente. Quando fazemos isso, estamos ampliando a liberdade, tornando gerenciadora do mundo e condutora do destino nosso e da comunidade em que somos reconhecidos como “eus” e como “nós”.
Fundo pomba branca voando 35.jpg

 A liberdade romântica serve para adquirirmos a capacidade de entender o que é voar: se uma pomba acha que vai ter mais velocidade eliminando a resistência do ar, ela está correta, mas não de todo. Ela tem de casar sua aerodinâmica com a resistência do ar. Caso tire todo o ar, ficando no vácuo, sem qualquer resistência, também perderia a capacidade natural de voo. Faria de suas asas um instrumento inútil. Saber ver compromissos com o meio ambiente é também uma forma de ver a liberdade. 

Não creio que essas formas de pensamento precisem necessariamente se excluir uma da outra. Como opção metafísica ou até mesmo cosmológica, sim. Todavia, como sistemas filosóficos que nós fazem pensar a liberdade, podemos muito bem manter a tensão entre essas maneiras de pensar de modo a navegar segundo uma bússola que se dá o norte, então também dá o sul. Caso façamos isso, podemos muito bem evitar aquelas posições que levam alguns filósofos a optarem por partidos, negando o filosofar. Estou pensando aqui, como exemplo, em Denis Rosenfield no programa do Jô, sendo ridicularizado por este ao dizer que gostaria de ter o direito de ser idiota e, então, não usar o cinto de segurança no seu carro. Estou pensando aqui, como exemplo, em Luís Felipe Pondé em seu livro Contra um mundo melhor, que acredita que pode dizer que não se é livre se há algum compromisso com a família ou com qualquer vida comunal.
Ora, se pensamos assim, como eles, a filosofia é jogada fora. De que adianta a filosofia se o pensamento partidário nos ganha já de início, levando-nos ao dogmatismo que não nos deixa pensar a respeito da situação concreta em que vivemos? Pois, do modo como eles pensam, não conseguimos entender como lidar com a liberdade no nosso cotidiano.
Posso desafiar o Estado e dizer que não vou usar o cinto de segurança, como Rosenfield fez. Todavia, se assim faço, meu “direito de ser idiota” acaba sendo concedido e todos os que estão comigo podem realmente me chamar de idiota. É para ser chamado de idiota que se filosofa?
Posso desafiar a família ou a cidade e dizer que não vou prestar qualquer atenção às suas coerções e aos seus benefícios, como Pondé dá a entender. Todavia, se assim faço, não consigo nem mesmo exercer o “direito de ser idiota” uma vez que, é muito provável, minha vida irá se encerrar rapidamente. Imagine alguém que negue os pais, a escola, o serviço militar, a carteira de identidade, os diplomas e tudo o mais. Ora, é para ser tomado como um idiossincrático que filosofa? Ou é para ser tomado, de fato, como um inexistente e sequer um ser imaginário?
Em ambos os casos, o de Rosenfield e de Pondé, o problema é o de não fazer uso da filosofia para a própria vida. Estudam-se textos filosóficos, mas a filosofia é deixada de lado ao se tentar colocar os dois pés na Terra.
Eu prefiro não abandonar a filosofia e não tenho como não caminhar com ela. Nesse sentido, a liberdade, como eu a entendo e a vivo, não é uma noção que me joga como alguém que não tem nada a fazer na Terra senão sumir.
A liberdade iluminista nos dá a chance de nos pensarmos livres em um sentido especial, imaginário, quase que mágico. Ela nos dá força para o nosso voluntarismo. Sem ela, olharíamos sempre para as tradições e retardaríamos nossas ações mais ousadas de inovação. A liberdade romântica serve para adquirirmos a capacidade de entender o que é voar: se uma pomba acha que vai ter mais velocidade eliminando a resistência do ar, ela está correta, mas não de todo. Ela tem de casar sua aerodinâmica com a resistência do ar. Caso tire todo o ar, ficando no vácuo, sem qualquer resistência, também perderia a capacidade natural de voo. Faria de suas asas um instrumento inútil. Saber ver compromissos com o meio ambiente é também uma forma de ver a liberdade.  Não entendemos mais ou menos a liberdade optando por um e outro caso. A compreensão vem de notarmos a plausibilidade de Kant e Hegel, não de tomar partido por um ou outro.
Quando nossa compreensão entra em sintonia com a capacidade de tomar as posições filosóficas em tensão, então até podemos conseguir ver Rosenfield e Pondé com bons olhos, imaginando que eles estão apenas radicalizando posições. Todavia, também nos dá a chance de nos afastarmos deles. Devemos nos afastar caso eles estejam agindo do modo que estão agindo não para entortar a vara que, uma vez solta, tenderá a adquirir uma posição normal, mas, sim, porque realmente optaram por acreditar que podem fazer filosofia destilando dogmatismos que em nada ajudam na vida diária.
Se Rosenfield e Pondé estão apenas “entortando a vara”, o que falam é até válido. No entanto, se estão mesmo assumindo o que falam como alguma posição concreta, filosófica, que os faz lidar com a vida, então a coisa é grave. Nesse caso, é preciso ver que eles, ao assumirem que são “de direita”, talvez levem a posições de completa desconsideração da liberdade, tão fácil de encontrar na esquerda. Isso se não for o caso de nem considerá-los, se para a filosofia prática ter algo a ver com a prática, ou seja, com condutas propiciadas pelos nossos costumes e hábitos no dia-a-dia.
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* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/2012/08/09/liberdade-entre-iluminismo-e-romantismo/

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