terça-feira, 14 de agosto de 2012

O filisteu e a razão

Paulo Ghiraldelli Jr*

 
Não considero boa a interpretação de Horkheimer no livro Eclipse da razão, em que ele faz uma crítica à razão instrumental e a alia, não pelos seus méritos e sim pelos seus defeitos, à filosofia americana, em especial a Dewey e James.
A tese de Horkheimer é simples. Ele condena a razão instrumental (a razão técnica de Habermas ou razão meio-fim de Weber) porque ela, sendo subjetiva, e uma vez não tensionada pela razão objetiva, leva-nos todos à incapacidade de tomar as coisas por elas mesmas. Assim, na linguagem de Hannah Arendt, mas não em sua tese propriamente dita, a filosofia americana par excellence estaria a um passo de não ser filosofia, mas apenas uma maneira de pensar e agir do filisteu culto. Explico exemplificando.
Os filósofos americanos pragmatistas nada seriam que uma versão um pouco menos rude daquele burguês que não entende uma igreja do século XIII erigida para a Glória de Deus. Ora, uma Igreja tem de ter alguma utilidade – assim pensa o filisteu. Se a Glória de Deus é, agora, uma mentira, uma vez que não existe Deus nenhum, então a igreja precisa apresentar alguma utilidade para não ser varrida pela especulação imobiliária. Pode ficar como “ponto turístico” e trazer lucro. Pode ficar como “ponto ideológico” e beneficiar os pastores ou padres que, enfim, ajudam políticos que, por sua vez, colaboram na manutenção de alguma moral e do status quo. Ou pode ali permanecer porque os que nela residem fazem caridade, ajudando o estado no serviço social etc. É preciso uma função para a igreja que seja compatível com a sua utilidade para nós. Fora disso, que o lugar dê espaço para um estacionamento ou um shopping ou os dois. Nessa hora, o filisteu culto opta pela utilidade da igreja como ponto turístico ou como lugar de esmola, enquanto que o filisteu não culto quer simplesmente o shopping. Afinal, dentro do shopping é até possível uma réplica da tal igreja ou coisa parecida ou, então, um templo “mais moderno”, para os que ainda acreditam em Deus.
Filósofos como Horkheimer ou Bertrand Russell viram o pragmatismo americano mais ou menos assim. Aos poucos esse tipo de leitura se agrupou a um anti-americanismo nascido por outras vias, inclusive políticas, e eis que o pragmatismo foi confundido com o utilitarismo do senso comum. Nem mesmo a confusão se deu com o utilitarismo filosófico de John Stuart Mill que, enfim, raramente foi levado a sério pelos filósofos continentais, especialmente os que inebriaram várias gerações de estudantes brasileiros, sempre prontos a se acharem mais cultos que os norte-americanos – sabe-se lá por qual motivo outro que não a megalomania.
Hannah Arendt cometeu menos erros, creio que por ter morado na América e se envolvido mais com essa terra que os frankfurtianos. Ela não acertou quanto a conceituar o pragmatismo, mas, ao menos, não o colocou como um elemento a mais do filisteísmo. O seu conceito de filisteísmo culto até hoje nos ajuda a corrigir Horkheimer e, enfim, abre uma porta para lermos de modo integrado a cultura da Europa com a da América, uma integração que se expressa bem em Richard Rorty.
Para Arendt o filisteísmo não se expressa na didática, ainda que várias fórmulas didáticas sejam próprias ao filisteísmo. Assim, quando eu digo que O Mundo de Sofia é um tipo de peça que agrada o filisteu, eu não estou qualificando esse livro desse modo por que ele é útil pelo seu didatismo. Estou dizendo que é uma peça inerente ao filisteísmo por que ela pressupõe uma inverdade decisiva: a de que a história da filosofia não nos serve, e que é preciso um subterfúgio para que a história da filosofia seja engolida ou apreciada. O leitor desse livro que, por ele, acaba gostando da história da filosofia é levado a crer que se ele não tivesse encontrado O Mundo de Sofia ele jamais gostaria de filosofia. Mas isso é um erro. Ele gostou de filosofia não pelo Mundo de Sofia. Se ele gostou de filosofia foi pela filosofia. Ele gostaria da filosofia se ela viesse pelas mãos de um filósofo clássico. Mas ele gostou por meio da história externa à história da filosofia porque a decisão sobre isso foi da cultura filisteia posta antes dele, e que o tomou como quem não gostaria de filosofia a não ser se a filosofia viesse em um invólucro não filosófico. Ora, se como editores apostamos em um livro e investimos dinheiro nele e ele faz sucesso, devemos considerar que o sucesso dele não se deveu só à sua qualidade de seduzir, mas também ao nosso crédito e ao nosso dinheiro. O que foi investido conta. A contraprova é a coleção Os Pensadores, sucesso de vendas no Brasil tanto quanto o Mundo de Sofia.
O livro O Mundo de Sofia pode ter duas histórias boas, a do livro e a da filosofia. Não importa. O que importa é que a intenção de venda do livro está dirigida pela ideia que não é didática ou culta, é apenas a da utilidade rasteira, a da estratégia de venda. A questão da mentalidade do filisteísmo é esta: qual livro pode ser produzido que faça com que as pessoas digam que são cultas, porque estão lendo filosofia, e ao mesmo tempo seja igual a qualquer outro entretenimento, que é o que vai sobrar de concreto, uma vez que a história da filosofia ali apresentada é, em parte, verniz.
Assim, o pensamento aí é estratégico. É o pensamento do vendedor. A racionalidade meio-fim impera solitária. O que fazer para tornar o livro algo que vá para a casa do leitor e este possa presentear seu filho e, então, dizer para o vizinho: “nossa, seu filho lê gibi ainda, ah, o meu lê filosofia, O Mundo de Sofia”. É isso! Dentro de O Mundo de Sofia pode haver algo bom ou ruim. Não importa. O que importa é que a fórmula encontrada é a do entretenimento culto, onde a superficialidade encontra sua utilidade perfeita. Há a superficialidade como sendo a utilidade. O livro funciona. Funcionar é o que importa. Na linguagem dos frankfurtianos há um conceito para nomear tal coisa que, enfim, também ficaria melhor na linguagem de Arendt: esse livro pertence à indústria cultural. Não é o livro de Malafaia que pertence à indústria cultural. Talvez nem mesmo o Ágape do Padre Marcelo. Estes estão aquém disso. É O Mundo de Sofia o exemplo típico. Sua dualidade é o que o caracteriza como um tipo de digest.
Tanto Malafaia quanto o Padre Marcelo querem vender livro e usariam de todo tipo de estratégia para tal. Mas só o autor de O Mundo de Sofia realmente fez pacto com o demônio de Horkheimer para vender livro. Ele uniu a estratégia geral com a estratégia típica do ambiente filisteu. Ágape e coisas do gênero não são duais. Ninguém culto vai ler esses lixos. Mas os aspirantes à cultura enquanto alguma coisa que pode ajudar no alpinismo social, estes sim, com clareza ou não de quem eles próprios são, são os leitores de O mundo de Sofia. Só o Mundo de Sofia aproveita ao máximo a esperteza da razão instrumental.
No entanto, se O Mundo de Sofia é o suprassumo da atuação da razão instrumental isso não significa que quando usamos a razão instrumental estamos sempre produzindo coisas como O Mundo de Sofia. E é aqui que Horkheimer e Adorno tropeçaram, inclusive quando descreveram a Indústria Cultural. Para notar isso, ficar só com Hannah Arendt não basta. É necessário voltar ao próprio pragmatismo.
A melhor descrição que conheço da atividade racional é a de Richard Rorty. Afeito ao estilo da filosofia analítica, fruto da linguistic turn, Rorty não fala em razão ou racionalidade de modo vago, mas localiza concretamente o uso do termo em nossa linguagem, não deixando o assunto escorregar pelos vãos dos dedos.
Falamos em razão? Onde? Falamos em racionalidade? Como? Rorty localiza três e só três usos desses termos em nossa prática linguística e, portanto, em nosso pensamento. Quando falamos em racionalidade (ou razão) isso ocorre em frases que podem ser assim enumeradas:
  1. A razão técnica ou instrumental ou de meio-fim, nós a utilizamos quando não importam os fins ou quando os fins importam, mas, mais que eles, o que vale é encontrar os meios para alcançá-los. Quando discutimos pouco ou nada os fins, mas valem os meios, eis que nossa linguagem chama a racionalidade instrumental como sendo a racionalidade par excellence. Estou perdido e com fome. Meu alvo é comida. Então, não discuto muito qual comida e sim como chegar à comida. A comida por ela mesma perde o valor. Encontrar algo que me guia até a uma fruta ou coisa parecida se torna mais importante. Sou racional à medida que elaboro boas estratégias para pegar essa fruta.
  2. Depois que encontro a fruta e a devoro, descubro que não há só aquela fruta. Bom, então, a estratégia para encontrar comida cai para segundo plano. Começo a pensar no valor da comida por ela mesma: qual a melhor, mais saudável, mais apetitosa? Agora, sou racional se consigo discutindo as possibilidades da própria comida. Meu sucesso como racional é o meu êxito em ter a mais nutritiva e a mais apetitosa ao mesmo tempo, entre aquelas que estão ali ao meu dispor.
  3. 3.       Por fim, percebo que há outros famintos ali por perto que podem roubar minha comida. Observo a força deles e a minha e vejo que há equiparação. Seria irracional partir para a luta. Seria melhor pedir a eles coisa como “sejam racionais”, “sejam razoáveis”, “não vamos nos matar porque podemos acabar sem nenhum vitorioso, vamos dividir”. Então, essa racionalidade liberal, a da tolerância, termina por ser um terceiro tipo de racionalidade. Somos plenamente racionais ao agir assim. Trata-se aí de uma racionalidade política, mas que, nessas circunstâncias, é a racionalidade tout court.
De modo algum não somos racionais por privilegiarmos uma das opções, isso porque jamais deixaremos de, no mesmo momento ou em um momento seguido, privilegiar as outras. A racionalidade, como ela está posta em nossa linguagem, comporta esses três aspectos, a de meio-fim, a objetiva e a liberal.
Os filósofos continentais ouviram a palavra “pragmatismo” e não souberam associá-la ao que é próprio do pragmatismo, ou seja, o uso que faz diferença na prática. Ligaram a palavra a uma noção abstrata, tipicamente da mentalidade continental, e a preencheram como um nome que seria sinônimo de “é racional quem se utiliza da racionalidade instrumental”. Mas os três usos acima descritos são usos pragmáticos e racionais, que fazem diferença na prática e ao mesmo tempo mostram o uso da razão, portanto plenamente pragmáticos e racionais. Ainda que possam se mostrar às vezes quase autônomos, em determinado momento, eles não sobrevivem separados em nosso comportamento linguístico e, enfim, e nossa ação em geral, mas se integraram em uma racionalidade que é a racionalidade, como falamos, nesses três aspectos conjuntos.
Somos racionais ao relacionar meio-fim tanto quanto quando discutimos valores e fixamos objetivos e, também, tanto quanto quando pedimos razoabilidade e tolerância. Isso é verdade. Se falhássemos em um dos comportamentos racionais exemplificados, seríamos tomados o como tendo fracasso pelo não uso da razão.
Podemos ser filisteus nos três casos. O filisteísmo é marcado não pelo privilégio da razão instrumental sobre outras expressões da razão, mas pelo uso exclusivo dela, sendo incapaz de ver racionalidade no que não é estratégia. Mas, nesse caso, quem seria filisteu? Que filósofo pregaria isso? Dewey ou James? Ora, eles não seriam filósofos se assim agissem. Mas, enfim, nem mesmo intelectuais seriam. Talvez, nenhum de nós conseguiria agir assim, e o burguês filisteu pode ser delineado como um tipo ideal (weberiano), alguém que imaginamos capaz de funcionar o tempo todo como quem está aquém do trânsito com a linguagem. Tratar-se-ia de alguém que se aferra a um vocabulário estreito, de modo que a própria tolerância e o  que é objetivo acabam lhe sendo desconhecidos.
O filisteu não é filisteu por que subsume o objetivo e a tolerância ao meio-fim, mas por que exclui a tolerância e o objetivo como perdas de tempo, bobagens, idiossincrasias, vendo racionalidade apenas na sua tarefa de encontrar meios. O objetivo é pré-dado pela própria utilidade já posta socialmente pelo ambiente filisteu. E a utilidade é a utilidade individual, mesquinha, de satisfação de seus interesses imediatos. Está longe de ser a utilidade da filosofia do utilitarismo britânico, que paga tributo à regra de decidir pelo bem estar do número máximo de pessoas, o que é, enfim, diminuir a dor do número máximo, uma regra que vem lá do hedonismo antigo.
Assim, o filisteísmo pode ser definido, nos termos de Arendt, como a incapacidade de encontrar aquilo que Rorty chama de uso da segunda noção de racionalidade, a racionalidade que se expressa quando discutimos e adotamos valores, quando tentamos captar o valor intrínseco dado ou pela natureza ou pela história de determinada coisa ou situação. Todavia, há mais em Rorty, e é o que falta na teoria de Arendt. Também é filisteísmo quando há a incapacidade de usar da terceira noção de racionalidade, a de optar pelo diálogo, pelo “sejamos razoáveis, não vamos partir para a violência”.
O filisteu da cultura se envolve com um vocabulário tão estreito que ele chega a ter um dicionário em que a terceira e a segunda noção de racionalidade não são vistas como racionalidades. Há uma hipostasia da racionalidade meio-fim em suas ações de modo que ele, depois disso, começa a acreditar que se ele não é um filisteu, um amante da utilidade imediata e mesquinha, ele nem é mais racional. Ele começa a chamar os que usam de uma racionalidade mais ampla de não racionais, ligando-os à visão de senso comum que diz que tais pessoas vão pela “paixão” e não pela “razão”. Seriam os “românticos”, utilizando tal palavra segundo o senso comum.
O pragmatismo é a filosofia que toma suas análises e descrições a partir do que faz diferença na prática. As diferenças que não fazem diferença na prática são postas em segundo plano. É exatamente com isso em mente que podemos descrever os usos do termo racionalidade e ligarmos esses usos ao que é e ao que não é o filisteísmo, como fizemos aqui. Tomar o pragmatismo fora disso e, pior, como uma prática de filisteísmo é um erro crasso.
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* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/2012/08/12/o-filisteu-e-a-razao/

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