sexta-feira, 21 de setembro de 2012

A cidade e os projetos

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 Grandes projetos, como a recuperação da zona portuária carioca, envolvem mudanças de zoneamento e a criação de equipamentos culturais, como o Museu do Amanhã

Às portas das eleições municipais no Brasil, o debate sobre os problemas e as perspectivas para o futuro das cidades ganha destaque. Os gargalos de mobilidade, habitação e segurança, para se ater a três temas, revelam que os muitos sistemas que constituem uma cidade são inseparáveis. Pensá-la como um todo, desenvolver grandes projetos de recuperação urbana e valorizar as preocupações arquitetônicas nas grandes cidades brasileiras estão no escopo do encontro Arq.Futuro, que ocorre em São Paulo na segunda e na terça-feira. Com a presença de arquitetos e urbanistas brasileiros e estrangeiros, o evento põe em questão a encruzilhada em que se encontram as metrópoles: um "futuro de caos ou ordem das megacidades em contínuo crescimento".

Segundo o curador do encontro, o arquiteto e editor Fernando Serapião, os diferentes aspectos tratados pelos palestrantes só conseguem produzir efeitos reais sobre a vida urbana quando articulados entre si. Os eixos são três: o problema da habitação no contexto do mercado imobiliário; o aproveitamento de espaços públicos para a cultura e o lazer; e o uso da tecnologia para tornar o funcionamento das cidades mais eficiente. "Nenhum desses eixos pode resolver a questão urbana por conta própria. Não se trata de apenas eliminar o déficit habitacional ou apenas aproveitar melhor os espaços públicos. Esse evento serve para envolver toda a sociedade, não só arquitetos e estudantes de arquitetura, na discussão sobre as cidades, o espaço em que todos vivemos nosso dia a dia", afirma o curador.

A série de debates e palestras ocorre no momento em que as grandes cidades brasileiras se preparam para eventos como a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016, com iniciativas grandiosas de renovação urbana. Destacam-se o projeto Nova Luz, na região central de São Paulo, e o Porto Maravilha, que pretende transformar a área portuária do Rio em novo polo da cidade. Em comum, os dois projetos prometem derrubar uma via elevada (a Perimetral no Rio e o Minhocão em São Paulo), mudar o zoneamento em muitos quarteirões e construir equipamentos culturais impactantes: o Museu do Amanhã, no píer Mauá, no Rio (projeto do espanhol Santiago Calatrava) e o Complexo Cultural Luz, em São Paulo (do escritório suíço Herzog & de Meuron).

De acordo com Serapião, o caminho para o sucesso de iniciativas de recuperação urbana passa por essa conjunção entre legislação, recapacitação da área visada e estabelecimento de equipamentos que atraiam atenção e produzam movimento. Sozinhos, esses equipamentos não são capazes de injetar vitalidade numa região degradada.

"A região da Luz recebeu equipamentos excelentes, como a Sala São Paulo, o Museu da Língua Portuguesa e a Pinacoteca do Estado, mas continua sendo uma região degradada", afirma o curador. "Por outro lado, se o poder público se limitasse a incrementar o mobiliário urbano, as pessoas poderiam até frequentar mais o lugar, mas não necessariamente seriam atraídos novos investimentos."

Em sintonia com o movimento de novos projetos urbanos, os debatedores têm a tarefa de discutir como o planejamento pode se orientar para incentivar a espontaneidade da vida na cidade. Entre os convidados, contam-se representantes do mercado imobiliário, como Otávio Zarvos, diretor da incorporadora idea!Zarvos; arquitetos de edifícios ousados, como o casal Tod Williams e Billie Tsien, que projetaram a celebrada sede da Barnes Foundation, na Filadélfia; e planejadores urbanos como o americano Thaddeus Pawlowski, urbanista do departamento de planejamento da cidade de Nova York, responsável por projetos de infraestrutura de larga escala. (Leia a entrevista com Pawlowski na pág. 8.)

O evento, que ocorrerá no Auditório Ibirapuera, em São Paulo, está em sua terceira edição (outras informações em www.arqfuturo.com.br). A primeira, em São Paulo, ocorreu em novembro. A segunda, no Rio, foi em março e contou com a presença dos economistas Edward Glaeser e José Alexandre Scheinkman, para satisfação dos organizadores. "É um debate que não pode ficar circunscrito à arquitetura", diz Serapião.

O desejo de planejar as cidades atingiu o ápice no século XX, sobretudo após a Segunda Guerra. A destruição por bombardeios da maior parte das grandes cidades europeias abriu caminho para a aplicação de ideias arquitetônicas e urbanísticas que vinham sendo discutidas desde o entreguerras (1918-1939) no âmbito dos Ciam (Congrès Internationaux d'Architecture Moderne), encontros periódicos dedicados a pensar as feições das cidades do antigo continente perante o advento da era do automóvel e da grande indústria.

O suíço Le Corbusier, que influenciou grande parte da arquitetura e do urbanismo brasileiros do século XX, foi um dos fundadores dos Ciam. "A vanguarda urbanística da época acreditava na setorização: um lugar para morar, um lugar para trabalhar, um lugar para consumir", diz Serapião. "Mais tarde, descobriu-se que a separação foi um erro."

Historiadores do urbanismo, como Charles Jencks, chegam a definir com muita precisão o fim do modernismo em arquitetura e urbanismo: em 1972, o conjunto habitacional Pruitt-Igoe, em Saint Louis, nos Estados Unidos, foi demolido. Projetado em 1954 por Minoru Yamasaki, considerado um dos maiores arquitetos modernistas do século XX, o conjunto se tornara rapidamente um enclave de violência e degradação, reconhecido por suas janelas quebradas.

"As melhores cidades são aquelas que estimulam qualquer pessoa, o morador e o visitante, a ter vontade de morar, voltar, sentir prazer naquele espaço, no convívio, na atmosfera", afirma Serapião. A ambição funcional sobre as cidades ficou para trás e o novo paradigma do urbanismo se traduz em incentivos para que os cidadãos criem suas formas de vida, por meio de leis de zoneamento e associações que envolvam os moradores - o curador cita como exemplo o movimento que, nos anos 1970, impediu que o bairro carioca de Ipanema fosse tão verticalizado quanto a vizinha Copacabana. "Deu certo. Em Ipanema, os prédios têm bem menos altura do que em Copacabana. Isso é muito mais agradável do ponto de vista ambiental e urbanístico."

Tecnologias de informação são uma das ferramentas disponíveis para incentivar os próprios cidadãos a mudar suas cidades. O arquiteto italiano Carlos Ratti, diretor do laboratório Senseable City, no Massachusetts Institute of Technology (MIT), afirma que o trinômio computadores pessoais velozes, bancos de dados abertos e recolhimento de informações pode permitir à população reorganizar o modo de funcionamento de suas cidades. (Leia a entrevista com Ratti na pág. 9.)

Para esclarecer que mudar uma cidade não é tão fácil como pode soar, Serapião evoca as matrizes culturais brasileiras e cita o antropólogo Roberto DaMatta. "Temos dificuldade em entender o espaço público como o lugar que temos para conviver. É a clivagem entre a rua e a casa. A casa é qualquer ambiente privado, em que há hierarquia e tudo é bem organizado. Não é a lei que a regula, existe uma ordem própria que está ausente do espaço público. O que sobra é a competição", diz.

O resultado é a segregação dos usos, a escolha por condomínios fechados e o empobrecimento da experiência urbana. "O debate arquitetônico pode revelar às pessoas que são parte não só do problema, mas também da solução", afirma Serapião. "Se alguém não quer lojas no térreo de seu prédio, deveria pensar primeiro no muro do condomínio fechado e no efeito sobre a calçada." O problema do uso dos espaços e os vícios sociais saem do escopo da arquitetura e do urbanismo, lembra o curador, "mas o papel do evento é colocar isso em pauta até onde podemos alcançar. O problema envolve toda a sociedade."
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Reportagem Por Diego Viana | De São Paulo

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