quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Imaginário paralelo

Juremir Machado da Silva*



<br /><b>Crédito: </b> ARTE JOÃO LUIS XAVIER
É um vício, uma mania, uma obsessão: não consigo deixar de falar de literatura. Alguns leitores me detonam. Por que não falo dos hospitais superlotados? Por que não me ocupo da violência provocada pelos consumidores de drogas? Por que perco tempo com autores e seus livros secretos? Eu deveria ouvi-los. Afinal, por mais que alguns se indignem, os livros estão com os anos contados. É batalha perdida. A leitura é como a ararinha-azul, uma espécie em extinção. A imagem e o som vão engolir tudo. Escritores extraordinários como Paul Auster não vendem 5 mil exemplares no Brasil. Idiotices monumentais, como "50 Tons de Cinza", é que emplacam. Apesar disso, eu me mantenho atento aos bons escritores gaúchos. João Gilberto Noll, que lança hoje "Solidão Continental", é um deles. Noll ganha prêmios, é admirado por críticos, tem seu público, mas não é popular. Neca.

Alguns o rejeitam por preconceito. Ele é certamente o autor mais sofisticado a tratar do imaginário gay. Houve um tempo em que não se podia falar de amores homossexuais. Ou se tinha de abordá-los sutil ou transversalmente. O amor romântico era exclusividade de pares heterossexuais. Estamos noutro mundo. Já não há como silenciar esse universos de paixões. Noll, em todo caso, é, acima de tudo, um escritor. Não pode ser resumido a porta-voz de um gueto. O curioso é que alguns podem tentar rotular a sua literatura dessa maneira, mas não teriam reação semelhante diante de obras focadas nos desejos, encantos e desilusões de amantes de sexos diferentes. Nos livros de Noll há sempre estranheza, solidão, personagens errantes, vazio e angústia. Eis um autor que não tapa o sol com a peneira. Imagino que muitos se recusem a ler seus livros incomodados pela crueza dos relatos. É o mundo atual que se mostra nu.

Noll é o intérprete de um imaginário paralelo que está aí, diante de todos nós, pulsante, cortante, incontornável. Escrevo isso e penso no leitor pragmático, aquele que pergunta: "E daí?", aquele que confunde o cronista com um representante de um SAC - serviço de atendimento ao cidadão, ou ao cliente, aquele que, no fundo, pergunta: para que serve a literatura? Leio Noll e encontro a resposta: para falar daquilo que incomoda. Tem o leitor que precisa de muleta e adora dicas de restaurante, de cinema, de teatro, de verduras, de amaciante de roupas e de livros. É aquele leitor preguiçoso que escreve para perguntar: "Onde encontro esse livro?". É o cara que não foi apresentado ao Google.

"Solidão Continental" não é manual de utilização nem manifesto gay. É história, trama, mergulho, procura, pesadelo. De repente, o sujeito enfia a cabeça no vaso sanitário, aperta a descarga e sai numa piscina azul. Leio o e-mail do leitor: que eu tenho a dizer sobre o fator previdenciário? Por que não escrevo mais sobre os roubos dos mensaleiros? Por que não me ocupo do preço do tomate? Tanta coisa séria para analisar. Que posso fazer? A literatura tem consumido as melhores horas da minha vida. Noll não me fala do tomate. Só de sexo e da vida.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor. Tradutor. Colunista do Correio do Povo.
juremir@correiodopovo.com.br
Crédito: ARTE JOÃO LUIS XAVIER 
Fonte: Correio do Povo on line, 26/09/2012

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