sexta-feira, 28 de setembro de 2012

“Os Estados Unidos impuseram à América Latina um modelo que já não funciona”, afirma historiador

 Aos 57 anos, nascido no dia 22 de maio de 1955, Erick Langer 
 é um historiador especialista em América Latina que dirige 
o influente Centro de Estudos Latino-americanos 
da Universidade de Georgetown, em Washington.

Em conversa com o Página/12, o 
diretor do Centro de Estudos Latino-americanos
onde funcionará a Cátedra Argentina, que será aberta 
pela Presidenta explica por que fala quéchua e 
as razões da justiça social e das lideranças políticas fortes.

“Me parece muito interessante que o continente tenha mudado tanto na última década e tenha podido aproveitar, do ponto de vista econômico, uma grande mudança mundial: a maior presença chinesa”, disse Langer.

A entrevista é de Martín Granovsky e está publicada no jornal Página/12, 24-09-2012. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Em que, na sua opinião, a América Latina aproveitou a China?

A China é um rival dos Estados Unidos que requer matérias primas da América Latina. Isso contribuiu para que a América Latina pudesse enfrentar a crise em melhores condições. Não sem perigos, claro.

Qual será o perigo?

Que a América Latina não intensifique o processo de elaboração de matérias primas e siga exportando commodities. É um desafio para todos os governos da região, sem exceções. A vantagem é que a partir de 2000 a América Latina em geral, e a América do Sul em particular, se libertou da dependência do modelo neoliberal dos Estados Unidos.

Em que você vê que esse modelo afetava a região?

Criou um desassossego das classes médias e baixas em termos de distribuição da riqueza. Essa expressão não estava, evidentemente, no Consenso de Washington.

O documento do Consenso exortando à desregulação e a desregulamentar a economia é de 1989. Não ficou nada?

Na região? Praticamente nada. É um fator positivo para a região.

Ou seja, o crescimento chinês é um elemento positivo e a queda do Washington Consensus é outro ponto bom.

E acrescento um fator de peso: os Estados Unidos estão muito preocupados com o Oriente Médio e efetivamente não prestaram muita atenção à América Latina.

Os acadêmicos e os dirigentes políticos discutem sempre se isso é bom ou ruim. Alguns defendem que para a América Latina a situação é melhor quando Washington menos se ocupa dela.

Bom, em matéria política há um tema prático a ter em conta. Vai soar quase redundante. Quando Washington se ocupa menos, a ingerência é menor. A maioria das vezes que os Estados Unidos puseram o olhar em outros lugares e não tanto na América Latina, como na Primeira Guerra Mundial, a favorecida foi a América Latina. Não dou o exemplo da Segunda Guerra Mundial porque o fenômeno é muito mais complexo. Mas depois de muitas vezes o problema foi que os governos do continente não foram aliados dos Estados Unidos, mas dependentes de Washington. Não é a mesma coisa. Os Estados Unidos tinham o poder de se impor. De impor, inclusive, um modelo que já não funciona. Barack Obama se deu conta disso, embora seu principal tema não seja a América Latina. E antes dele, George Bush não estava concentrado na América Latina.

Quer dizer que é bom para a região que não haja uma dedicação especial.

Mas eu investigo a América Latina! Você quer que fique desempregado?

Professor, seu currículo na parte de idiomas diz que fala quéchua. Onde aprendeu?

Em Stanford.

Stanford, Califórnia?

Exatamente. Já anteriormente a zona andina me interessava e depois, graças ao quéchua, pude falar diretamente na Bolívia para entrevistar vários caciques andinos. Há tempo que não o falo, embora o entenda bastante bem. Sabe qual é o meu problema? Com que falar por aqui?

Por que se interessou pela América do Sul andina e pela zona do Chaco?

Quando era estudante de um programa de intercâmbio fui para Sucre. A um colégio jesuíta. Me impactou de forma profunda o fato de ter vivido ali. Originalmente, queria voltar para a Europa. Passei cinco anos na Alemanha. Aquela viagem pela América do Sul foi incrível. Era junho, julho e agosto de 1973. Viajei por quase toda a região. Cheguei ao Chile quando Salvador Allende ainda estava no governo. Estando na Argentina, por pura casualidade não fui um dos que estiveram presentes no dia 20 de junho de 1973, quando Juan Domingo Perón voltou definitivamente. Me salvei dos tiros porque havia decidido ir a Ezeiza e no último momento alguns amigos de Córdoba me chamaram. Acompanhei tudo. Pouco tempo antes haviam matado o Che Guevara.

Claro, o mataram na Bolívia em 1967, apenas seis anos antes de sua viagem. De seu próprio “Diário de motocicleta”. Até onde chegou?

Até Medellín. Dali volte de avião aos Estados Unidos. Em Sucre e depois através das minhas pesquisas indaguei sobre a resistência camponesa o que se podia chamar, grosso modo, de modernização. Para mim foi fascinante. Os pesquisadores não costumam tomar como objeto de estudo as regiões em declive, mas em crescimento. Fazem mal, porque é muito interessante. Eu tratei de ver como se portavam as pessoas quando tudo ia pior e que mudanças aconteciam, por exemplo, do final do século XIX para o século XX, pela passagem da mineração da prata, com centro em Potosí, à mineração do estanho, que favoreceu mais o norte que o sul. O próximo projeto incorporará o comércio no norte da Argentina, que investiguei muito nos últimos anos. No século XIX não havia ainda fronteiras nacionais efetivas. As fronteiras econômicas iam muito além. Pensar em unidades nacionais no século XIX é perder algumas perspectivas, como a da Bolívia, e não entender bem as relações e as encruzilhadas com o norte argentino, chileno e o sul peruano. Nesse momento me interessaram os chiriguanos. Mas a minha tese já estava avançada e resolvi deixar o tema para mais adiante. É gracioso, porque terminei publicando um livro 20 anos depois.

Vi o título. Traduzido seria Esperando peras do olmo: as missões franciscanas na fronteira chiriguana no coração da América do Sul, 1830-1949.

Leia-o, por favor. Espero que demonstre uma maturidade que antes não tinha como historiador. Olhe, naquele momento nem se usava a palavra “guarani”. No primeiro capítulo demonstro que o poder militar era a favor dos chiriguanos, e que com esse poder podiam tirar o excedente da sociedade crioula. Em muitos casos foram mais poderosos que os próprios crioulos.

E tudo pela raridade do intercâmbio em Sucre. É uma cidade muito bonita, mas pouco conhecida.

Melhor que não a conheçam. Deixe Sucre assim. Quando me aposentar quero me mudar para Sucre e morar na parte velha da cidade.

Professor, voltemos dos chiriguanos aos sul-americanos de hoje. Você compartilha a visão que mostra, do ponto de vista político, várias Américas do Sul situadas em extremos opostos?

Me parece que não há uma divisão tão taxativa porque os processos são muito semelhantes. Tomemos de novo em consideração algumas realidades. Antes os chineses pensavam na América do Sul como Chile, porque os chilenos haviam sido muito efetivos em se vender na China. Quer dizer que, em última instância, não foram tão diferentes como acabaram sendo os outros, não é certo? Na atualidade, a América do Sul tem uma realidade estável. É uma realidade comum. Mas também, com suas diferenças, o protesto é um hábito comum. Há protestos antigovernamentais, para além dos conteúdos, na Argentina, no Chile e no México. E dá a sensação de que às vezes é difícil classificar cada coisa como de direita ou de esquerda.

Pensa também na Argentina?

Claro. É difícil definir um governo de peronistas como de esquerda ou de direita. Há um processo político único ao longo da história que não encaixa muito bem nestes termos. Falo da formação do peronismo. Juan Perón estava muito convencido dos não alinhados. O justicialismo é uma mescla de muitas ideologias. Ainda hoje é difícil definir os Kirchner como de esquerda e ficar nisso como toda explicação. O peronismo tem uma organização de base muito mais forte que qualquer outro partido político em toda a América Latina e pode arrasar nas urnas. Organiza-se muito bem. Recolheu a herança e a retórica de cuidar dos operários, o que é muito importante. Vejamos uma diferença em relação ao meu país. Nos Estados Unidos não existe uma esquerda. Mas existe uma direita. Nesse sentido, hoje a Argentina está voltando a um leito natural. Carlos Menem obviamente foi peronista, mas tinha outras características e foi uma exceção nessa trajetória.

É exatamente a época do Consenso de Washington, que resumiu as experiências práticas de Ronald Reagan e Margaret Thatcher.

Sim, a década de 90.

Você dizia que falar de esquerda ou de direita não esgota uma análise. E a noção de populismo o satisfaz como conceito?

Também não é suficiente. É muito difícil definir o que é populismo. Dito agora é diferente de quando um pesquisador o aplicava nos anos 30 ou 40, uma época muito ligada ao começo das etapas de substituição das importações industriais. Hoje pode haver experiências de substituição, mas a base sempre é a busca de um tipo de relação com a economia mundial. O que se poderia resgatar, e há uma herança muito longa de Juan Manuel de Rosas em diante, é a importância que um chefe político que seja um personagem carismático pode ter. Isto faz com que a política se torne muito personalista. Assim teríamos uma característica populista. De todo modo, a chave é se se transpõem ou não os limites da democracia. Enquanto a oposição possa ganhar (se o faz ou não, é outra questão) está tudo bem. Não falo apenas da Argentina. Acontece em todos os países.

Os opositores têm a mesma característica em todas as partes?

Não. Mas há um elemento comum: a oposição está muito desorganizada em todos os países onde há líderes fortes.

Há líderes fortes porque não há oposição organizada ou há oposição desorganizada pela existência de lideranças fortes?

O populismo tem uma virtude e uma desvantagem: abarca muitas correntes políticas. E essas diferentes correntes se manifestam no líder. A oposição, ao contrário, não tem muitos interesses em comum e então as diversas correntes não se unem. A única exceção deve ser a Venezuela, onde a Mesa de Unidade Democrática conseguiu se unir contra Hugo Chávez. Mas até mesmo ali é preciso ver se ganha. E mesmo se ganhasse teria que ver se poderia continuar unificada, porque está incorporando tendências políticas diametralmente opostas.

Está fazendo um prognóstico eleitoral sobre o duelo entre Hugo Chávez e Henrique Capriles nas eleições presidenciais de 07 de outubro?

Não me dedico aos prognósticos nem à especulação. É um campo alheio ao meu. Para mim, como historiador, me é mais fácil analisar para trás do que me dedicar a dizer o que vai acontecer no futuro. Se soubesse do resultado das eleições na Venezuela, talvez teria outra profissão e quem sabe se não estaria mais próximo de morar na minha casinha de Sucre.

Bem. Deixo-o no passado. Que outro momento da Argentina viveu, além de 73 e do retorno de Perón?

Fui bolsista da Fullbright em 2000. Fernando de la Rúa era o presidente. Vi a queda, com o “corralito” e o drama social. E depois se deu a extraordinária recuperação econômica que vocês experimentaram. De todo modo, hoje me parece que se deve observar muito a velocidade relativamente menor de crescimento da economia chinesa e avaliar se a América Latina é capaz de saltar para outro modelo que no futuro não a faça depender da venda de matérias primas. Não sei se você sabe, quando conversam em privado, muitos dirigentes chineses equiparam a América Latina à África.

Em que se baseiam?

Nas perspectivas de utilização econômica. Eles não entendem as enormes diferenças. A América Latina é outro mundo, diferente da África. Mas muitos dirigentes chineses pensam assim.

Por que concordou em criar a Cátedra Argentina?

O embaixador Jorge Argüello veio e me propôs. Me pareceu bem. Pensamos em estabelecer um espaço acadêmico porque nos parecia que a Argentina é um país sumamente importante da América Latina. A Cátedra Argentina será uma forma construtiva de colocar a Argentina no tapete para que as pessoas de Washington se deem conta da complexidade do país. Para melhorar as relações é necessário melhorar a difusão e o conhecimento. O desconhecimento cria problemas. É um projeto de longo alcance. Essa Cátedra Argentina deve durar muitos anos e não depender da administração política de turno. Por isso necessitamos de recursos. O próprio embaixador me dizia que ele queria que seguisse em frente. O Brasil ganhou um grande espaço em Washington. É lógico. O Brasil está crescendo e tem importância mundial. Mas há países tão importantes como o Brasil e nosso objetivo é manter em tela também a Argentina.

Quem deveria olhar essa tela?

Os estudantes, evidentemente, e toda a comunidade acadêmica. Mas, mais amplamente, o conjunto de latino-americanistas, de especialistas em América Latina, e funcionários e dirigentes. Que conheçam mais a Argentina e a tomem em conta, porque é importante para manter boas relações na América Latina e no Cone Sul em geral.

Desde quando está na Universidade de Georgetown?

Desde 1999. Era o único latino-americanista com uma cátedra e não conseguia ter estudantes graduados. Agora tenho vários doutorandos. Queria entrar nisso. Georgetown é mais conhecida como universidade do que outras e tem um componente de comunidade universitária que me atraiu muito.

Seu livro sobre os chiriguanos está relacionado com uma missão franciscana. Mas você trabalha em uma universidade com tradição de estar ligada à Companhia de Jesus.

Embora lhe agregue um dado: nos últimos 10 anos, pela primeira vez na história da Georgetown não há um reitor jesuíta. Sua presença física diminuiu. Seu espírito é muito importante, porque se trata de uma cultura universitária que dá atenção ao ser humano total, o que não se dá em outras universidades. Para um professor com trajetória isso é apaixonante. Todos dão aulas, tanto nos cursos de graduação como de pós-graduação. Também somos uma universidade de pesquisa. E não deixamos de lado o componente da justiça social. Trabalhando sobre o tema dos movimentos indígenas me pareceu que podia fazer parte de uma equipe que tivesse interesse em temas de justiça social.

É um dos temas comuns da América Latina.

Sim, deve-se em boa medida às críticas e aos problemas do modelo neoliberal anterior, baseado no enriquecimento de um sobre os outros. Um modelo que no longo prazo não funciona. É uma luta que, como se terá dado conta, também travamos nos Estados Unidos. Há duas posições muito diferentes sobre como deveria ser o Estado e a quem deveria favorecer.

O candidato republicano Mitt Romney acaba de reivindicar o princípio de deixar uma parte da população à sua própria sorte.

O famoso comentário sobre os 47% que dependem do Estado. A liberdade econômica para todos é boa. Mas os mercados por si mesmos não dão conta. Falta um Estado que regule para que os mais poderosos e ricos não se aproveitem de todo o resto.
------------------
Fonte: IHU on line, 28/09/2012
Imagens da Internet

Nenhum comentário:

Postar um comentário