sábado, 27 de outubro de 2012

Autorretrato

Arnaldo Bloch*
  
Picasso 
 
'Eu não reparo nas roupas.Fico em casa aos sábados.
Desconheço a balada.
Não participo de nada.'

Eu durmo muito. E viajo pouco. Tenho ciclos importunos.

Meu compasso é louco.

Eu vivo à noite. Eu morro de dia. Não pego sol. Minha praia é assepsia.

Eu não reparo nas roupas. Fico em casa aos sábados. Desconheço a balada. Não participo de nada.

Eu nunca dei porrada. Minha parada é parado. Meu enfado é um evento.

Minha festa é pensamento.
Vou ao cinema sozinho. Ponho roupas molambentas. Meu armário está vazio.

Meu lençol não tem fio.

Aprecio a temperança. Não estou pronto pra todas. Perdi o gosto pelo uísque.

Sou o rei dos tiques.

Tenho um quê paquidérmico. Leio o que desejo. Não sei quem são os bons.

E me entupo de sitcoms.

Vejo mais do que ajo. Não sei fazer rima. Minha novela é o silêncio.

Odeio adrenalina.

Não vejo vida nos limites. Gosto de felicidade pequena. Creio em ideais.

Mas nunca entro em cena.

Eu conheço a solidão. Abomino a culpa. Amadureço lentamente.

E tenho os sonhos de um cão.

Eu assassino a ansiedade. Tenho fé num átimo. Não sei onde fica a cidade.

E não acho nada o máximo.

Eu medito sem medo. Vejo a lua se pôr. Eu detesto acordar cedo.

Tenho teorias sobre o amor.

Eu aguardo o momento. Tenho os olhos no céu. Sem intento, sem desejo.

Só um ensejo, ao vento.

Meu tesão vem do vazio. Minha ideia vem do sono. Meu sexo vem de Marte.

Meu oceano fica à parte.

Eu vivo no cochilo. Meu grilo é um gracejo. Meu sorriso é um suspiro.

Meu choro, um cochicho.

Meu amor é só um trilho. Meu segredo é o mundo. Meu plano é a Terra.

Meu coração não bate. Erra.

Meu abraço é uma esfera. Meu retrato é uma lente. Meu pulmão é um rastro.

Minha palavra, demente.

Minha letra é um entalhe. Meu ar é de pedra. Desfaleço diariamente.

E ressuscito no detalhe.

Eu amo nas entrelinhas. Desejo quietude. Caso-me com o espírito.

E aborto a saúde.

Eu injeto o incerto. Eu engulo os dejetos. Sou o monstro das verdades.

Eu nunca estou certo.

Eu desprezo a cartilha. Psicografo a liberdade. Redesenho a armadilha.
 
E me esqueço, ao relento.

Eu sou o pior rebento. Sou o anjo relutante. O demônio sem veneno. Eu congelo o instante.

Eu morro de calor. Tenho horror ao esquadro. Meu quadro é a moldura.

Meu destino não tem cura.

Minha cúria é um átomo. Meu reino é fogo fátuo. Eu durmo muito tarde.

Meu rumo arde.

Minha insônia é sônica. Meu despertar é um rugido. Eu ronco acordado.

Sou mudo, bastardo.

Tenho maus modos à mesa. Faço barulhos absurdos. Sonho com lugares cíclicos.

E rejeito o absoluto.

Vejo balões no infinito. Suspeito do 8 e 80. Disco 0800. E ouço o terrível grito.

Meu desespero é uma reta. Minha alegria, uma seta. Meu objetivo é um espirro.

Meu acerto é o desterro.

Meu desvio é marasmo. Meu pasmo é o óbvio. Meu despertar é um espasmo.

Meu orgasmo não se inscreve.

Meu voo é uma hérnia. Minha queda arremete. Meu corpo é um espaguete.

E meu íntimo, uma úlcera.

Meu nascimento é um fosso. Minha cultura é um vácuo. Meu discurso, um caroço.

E meu rosto, um número.

Meu gosto é roxo. Meu gesto é coxo. Meu olho é uma lágrima.

Que não corre desde o útero.

Meu socorro é um corvo. Minha persona, um cachorro. Minha tristeza é meu nome.

E minha fome, informe.

Minha sorte é um trovão. Tenho medo de avião. Sou aquele que não vem.

Não cheguei, não fui, não sei.

Eu vim de mim. Não trago novidades. Eu perdi a referência.

Nem sei qual é minha idade.

Minha música é um rabisco. Meu caderno é imundo. Meu caráter corre risco.

E minhas mãos escorrem, fundo.

Minha alma é um órgão. Minha palavra, um acórdão. Meu altar não tem assento.

Estou no limiar do tempo.

Minha pele nada expele. Meu espelho não me enxerga. Meu ouvido olvidou-se.

E meu nariz não cheira.

Meu passado não tem eira. Meu futuro é um furo. Estou à beira da beira.

Meu abismo é um muro.

Eu não tenho nenhum ego. Meu inconsciente ruiu. Não passo de um cego.

Que o acaso pariu.
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 * Colunista do jornal o GLOBO.
 ** E-mail: arnaldo@oglobo.com.br

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