quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Amor e a vivência do drama

 Flávia Guerra*
Contrariando a lógica e as apostas, a atriz Emmanuelle Riva não levou a Palma de Ouro em Cannes, em maio de 2012, por sua magnífica performance em Amor, de Michael Haneke. Perdeu para a dupla Cristina Flutur e Cosmina Stratan, do romeno Além das Montanhas. Mas surpreende o mundo agora ao se tornar a mais velha atriz a ser indicada para o Oscar (Amor concorre ainda nas categorias de direção, filme e filme estrangeiro).
Novamente, não deve levar a estatueta, mas só o fato de comover a Academia, e o mundo, ao dar vida a uma idosa que sofre, e divide, a decadência da velhice com o marido (Jean-Louis Trintignant) é feito e tanto. "Para mim, foi uma grande honra filmar com Michael. Não importam os prêmios, importa que é impossível recusar um convite dele. E que fizemos tudo que era possível para contar esta história com dignidade e amor. Teria ficado muito triste se ele não tivesse confiado em mim. Ele, tanto quanto eu, sempre soube que eu era capaz fazer este papel", disse a atriz em conversa com o Estado em Cannes, logo após o longa receber a Palma de Ouro.

O júri de Cannes não deu a Palma a Emmanuelle, mas não ignorou sua contribuição ao filme. "Determinante para a vitória de Amor foi a contribuição dos atores. São eles que dão vida a este drama tão duro e terno ao mesmo tempo", declarou Nanni Moretti, presidente do júri ao anunciar o prêmio. Experiente e sábio que é, Haneke (que já vencera o festival em 2010 com A Fita Branca) concordou e dedicou o prêmio a seus atores, "sem os quais o filme não seria possível", e à sua mulher. Quando questionado se oferecer a Palma à esposa seria mais uma forma de afirmar o valor dado à união entre duas pessoas, a mesma que se revela em seu filme, respondeu: "Não foi uma dedicatória exatamente. Foi o cumprimento de uma promessa entre duas pessoas. E também a promessa de não fugir à essência do filme. A história que eu conto é uma forma estética de ver esta promessa de amor", afirmou o diretor. "E se o filme é uma história de amor, nada mais natural que dedicá-lo a ela. Dizem que eu sou especialista em violência. Mas isso vem da necessidade de que a imprensa tem de catalogar tudo. Não me vejo assim. Para mim, este é um filme amor, seja qual a forma em que ele se manifesta", continuou Haneke.

Esta forma é, no mínimo, controversa. Assim como o amor também pode ser violento. "Você é tão doce. E é um monstro, às vezes", diz Anne, a personagem de Emmanuelle, em determinado momento ao marido Georges (Trintignant). "É esta dualidade, esta humanidade entre os dois, que está em todos nós, que seduz nesta história. É sobre um drama que todos nós vivemos ou vamos viver. Todos temos um mal, uma doença, uma fragilidade. Como lidamos com elas é que nos faz diferentes", declarou a atriz. É esta liberdade de ação dos personagens, e de interpretação por parte do espectador, a maior força de Amor. "E é assim que tem de ser. Livre. Na vida e no cinema. Fiz o filme de forma muito aberta, para que o espectador tivesse a opção de interpretá-lo. Se dou a minha opinião, limito o público", completou Haneke.

A interpretação surge quando o espectador se vê participando da rotina desse casal de idosos parisiense, em que o marido tem de passar a cuidar quase como de uma criança da mulher, após ela sofrer um AVC e ter parte dos movimentos paralisada. "Ela, que sempre foi uma pianista elegante e fleumática, apesar de carinhosa e mãe atenciosa, vê-se diante da decadência, do medo de sujar a reputação e a imagem do marido ao se revelar tão frágil e dependente. Há drama mais íntimo e, ao mesmo tempo, maior que este?", comentou Emmanuelle. Estrela de clássicos como Hiroshima mon Amour, que Alain Resnais filmou em 1959, a atriz diz saber de cátedra que a juventude é efêmera. "Acho que devemos encarar a velhice, e a presença da morte que ela traz muitas vezes, com alegria e não com tristeza. Eu, que vivo meus 86 anos, me pergunto sobre como lidar com a perda da dignidade, a dependência de outro, as dores. E como viver o amor nessas condições?"

Diz o ditado que não existe amor, apenas provas de amor. E é isso que Jean-Louis Trintignant oferece neste belo filme. "Devemos dar o exemplo. Ele é duro, e cuidadoso. É humano", disse o ator.

Para Trintignant, este é um filme poético. "Mas é a poesia em seu estado mais simples. É também como um romance contado de uma forma nova. Não há considerações psicológicas muito complexas sobre os personagens, mas sim uma história contada com honestidade, como ela de fato foi", afirmou. "Não é a idade dos personagens que importa, mas como vivem o drama. Envelhecer, e por vezes adoecer, faz parte da vida. Cabe a nós escolher como vamos encarar a experiência. Temos de tentar ser feliz. Nem que seja só para servir de exemplo." 
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* Jornalista.
Fonte: http://www.estadao.com.br/16/01/2013
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