sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Cícero, poeta do tempo.

 Cecilia Acioli/Folhapress
 Antonio Cicero: "Para ler poesia, o leitor deve entregar-se incondicionalmente, 
por um tempo determinado, aos caprichos semânticos, sintáticos, sonoros do poema"

Nossa vida cotidiana tornou-se quase inteiramente regida por princípios utilitários, pragmáticos, instrumentais, lamenta o poeta e filósofo carioca Antonio Cicero, de 67 anos. "Sempre foi assim, porém hoje as novas tecnologias eletrônicas potencializaram essa subordinação da vida ao princípio do desempenho." Ele reconhece que elas mudaram a vida de todos nós, que houve um avanço e uma transformação. Mas isso será apenas bom? "Ao invés de economizarem nosso tempo, as novas tecnologias o consomem." A tecnologia do século XXI devora o tempo. Devora o próprio século XXI. Resta-nos pouco tempo para meditar e contemplar. Para viver.

Para escapar dessa armadilha, Cicero - que no dia 11 se inscreveu para concorrer à vaga deixada pelo poeta Ledo Ivo na Academia Brasileira de Letras - se impõe certas regras pessoais, que segue com abnegação. Só consulta seus e-mails duas vezes por dia. Acessa a internet, na maior parte das vezes, apenas para fazer pesquisas, usando-a, assim, como uma antiga enciclopédia. Mantém um blog, chamado Acontecimentos (antoniocicero.blogspot.com.br), mas só o alimenta, com textos seus ou alheios, a cada dois dias. Também não participa das redes sociais, como o Facebook e o Twitter. Mesmo o celular, só o utiliza no caso de emergências, embora nele carregue também alguns dicionários e outros textos, de que eventualmente se vale. "Para mim, é imprescindível ter tempo", diz.

No mundo instrumentalizado e pragmático em que vivemos, ele admite, "é grande o pessimismo com que muitos consideram as artes tradicionais e, em particular, a poesia". Nosso mundo é veloz, obcecado por índices e resultados, quer as coisas sempre "para ontem". Tem como ideal, portanto, devorar o tempo, não usufruí-lo. "As artes tradicionais têm perdido sentido na medida em que deixaram de corresponder à exaltação contemporânea da atividade veloz, multifuncional, polivalente." Ninguém pode ler poesia, Cicero lembra, como quem lê um e-mail ou uma bula. A poesia não se lê apressadamente, mas, ao contrário, exige lentidão e entrega, paciência e concentração, devaneio e tempo. A poesia exige de seu leitor uma entrega absoluta. "Para ler poesia, o leitor deve entregar-se incondicionalmente, por um tempo determinado, aos caprichos semânticos, sintáticos, sonoros do poema." Mais uma vez: a leitura da poesia exige tempo. Dizendo de outra forma: a matéria da poesia é o próprio tempo.

O mais grave: essa entrega incondicional não oferece ao leitor garantia alguma de que ele terá, ao fim da leitura, um resultado palpável. A verdade é que não o terá. Em consequência, lembra Cicero, para a maioria das pessoas a poesia guarda um aspecto anacrônico. Extemporâneo, intempestivo, inoportuno. A poesia parece estar "fora do tempo" quando, ao contrário, ela é, por excelência, o lugar do tempo. Avisa Cicero, desde logo, que não partilha desse pessimismo em relação à poesia e às artes. "Ao contrário, penso que, ao abrir para o leitor uma dimensão do ser oposta à utilitária, pragmática, instrumental, uma dimensão do tempo que não é regida pelo princípio do desempenho, a literatura lhe oferece a possibilidade de um enorme enriquecimento vital." A poesia é um sopro que nos desperta. Mas é também uma brisa lenta e sutil, que exige paciência e serenidade. Quem chega a ela, porém, se vitaliza.

Assim é Antonio Cicero em pleno terceiro milênio: um homem que, justamente porque tem como matéria o tempo, está, de certo modo, fora do tempo ou, pelo menos, contra o momentâneo. Sim: é preciso aqui distinguir tempo e instante. O tempo é um fio, o instante é um corte. O tempo é uma longa estrada, o instante um semáforo que nos leva a parar para, logo depois, partir em disparada. Precisamos reaprender a respirar. Tudo isso vem... com o tempo! O pai de Cicero tinha uma grande biblioteca. Desde adolescente, ele pôde ler muito. Os portugueses, os russos, os franceses, os ingleses, os alemães, os italianos. Admite: "Hoje leio muito pouca ficção". Hoje lê, sobretudo, poesia e ensaio. Poesia e filosofia. "Acho que é uma questão de administração do tempo. Escrever sobre filosofia exige de mim um bom tempo de leitura, estudo e reflexão." Outra vez, e mais uma vez, o tempo, que deve ser curtido, alongado, prorrogado - isso em um século regido pelo culto ao instantâneo e ao "tempo real", que nada mais é que uma lasca do tempo, uma sucessão louca de fatias muito finas. E nos entulhamos dessas fatias finas e avulsas e ao fim (do tempo) estamos intoxicados, sem poder dizer o que engolimos. Não é assim nosso século?

Cicero lê também, é claro, muita poesia. E é a leitura da poesia, como em um círculo mágico, que o leva a escrever poesia. Que o empurra de volta a ela. Em seu livro mais recente, "Porventura" (Record), no poema "Auden e Yeats", como se estivesse dialogando com o poeta irlandês William B. Yeats (1865-1939), ele escreve: "possa a leitura da tua/ poesia, pura Musa,/ inspirar a minha arte". Outra vez a respiração. Mais uma vez o tempo, com seu ritmo mais natural, o inspirar e expirar. "A grande poesia, como a de Yeats, funciona para mim como uma Musa, que me impele a escrever." Logo: a poesia não é soprada desde fora, pelas filhas de Zeus, deusas distantes da Grécia antiga. É na própria poesia que a Musa habita. A poesia é a Musa da poesia, nos leva Cicero a pensar.

No mundo atual, lamenta Cicero, 
"é grande o pessimismo com que muitos consideram as artes tradicionais e, em particular, a poesia"

Entre todos os poetas, ele diz ainda, aquele com quem continua mais a aprender é Horácio (65 a.C.-8 a.C.), o poeta e filósofo da Roma antiga. "Cada vez que releio um de seus poemas, maravilho-me como se estivesse lendo pela primeira vez." Surpreende-se, sobretudo, com o modo como, nos poemas de Horácio, cada palavra modifica e é modificada pelas demais. Como se o poema estivesse vivo. (E não está?) Com seu olhar exigente, Antonio Cicero - embora leia os poetas brasileiros contemporâneos - acredita que a melhor poesia brasileira foi produzida no século XX. "Sobretudo a partir do modernismo." Pensa em Bandeira, Drummond, Cabral, Murilo Mendes, Cecília Meireles, poetas que constituem uma base muito forte para a poesia contemporânea. "E penso que há poetas contemporâneos que fazem jus a essa tradição." Discreto, prefere não citar nomes. Quanto a si mesmo, porém, não consegue se situar "em nenhum cenário literário". E, na verdade, nem faz questão disso. "Parece-me que, para fazê-lo, seria preciso tentar ver-se como que pelos olhos dos outros, e desconfio que quem consegue fazer tal coisa diminui a própria espontaneidade e potência". Um poeta deve contar apenas com o próprio olhar, ainda que esse olhar, a rigor, seja o da cegueira.

Cicero está cercado de livros. Lista que considera "nada original": Shakespeare, Hölderlin, Leopardi, Baudelaire, Rilke, Brecht, Yeats, Pessoa, Bandeira, Drummond e tantos outros. "Com eles aprendi que um poema é um objeto de palavras que merece existir por si." Adverte, porém, que essa afirmação não significa uma adesão ao formalismo. "Não é apenas a forma das palavras que interessa num poema, mas tudo aquilo de que ele é composto, inclusive os significados que ele suportar." Apesar dessa ressalva, insiste: um poema merece existir por si. "Sua apreciação mobiliza e confunde, isto é, atualiza, num jogo singular, as nossas mais diversas faculdades." Não apenas o intelecto, mas a imaginação, a razão, a sensibilidade, a sensualidade, a emoção - pensa Cicero - são afetadas pela leitura de um poema. O leitor se agita por inteiro. O poema (uma faca de palavras) o atravessa. A leitura do poema o interroga e transforma.

Ainda na adolescência, recorda-se, descobriu o conselho do russo Vladimir Maiakóvski (1893-1930), considerado o maior poeta do futurismo, que recomendava aos jovens poetas carregarem sempre um caderninho de notas e uma caneta. Até recentemente, cumpriu-o à risca. Depois descobriu que podia usar o telefone celular não tanto como telefone, mas como bloco de notas. "Eu o uso mais para isso, e como dicionário, do que como telefone".

Também abandonou o papel: hoje escreve já as primeiras versões de seus poemas no computador. Contudo, a sombra do papel permanece inalterável: não consegue ler bem um poema e corrigi-lo, se o conserva na tela do computador. Precisa imprimi-lo: só consegue mexer nele quando o deixa de volta deitado no papel. Depois, retorna ao computador, mais uma vez ao papel, outra ao computador etc., até o dia em que, por fim, dá o poema por terminado. É um processo longo e lento, em que, pouco a pouco, muitas palavras são abandonadas e muitas outras incorporadas, uma longa gestação que exige persistência e paciência. De fato, nos mostra Cicero, não existe poeta impaciente. Pelo menos, não para ele.

A poesia lhe surge de repente e em qualquer lugar. Pode surgir quando já está deitado, quase dormindo ou quase acordando, e nesses casos precisa se levantar correndo e anotá-la ou ela se perderá. "Caso não o faça, ela será, em 99% dos casos, esquecida. As palavras são, como dizia Homero, aladas, e voam para longe." Nada disso, contudo, o afeta ou cansa. A poesia (mesmo o mais árduo dos poemas) sempre deu a Cicero grande prazer e alegria. Entende assim: "A escrita é uma forma de enfrentar e superar a dor ou o sofrimento". Nesse caso, enfim, a poesia tem, sim, uma utilidade. Um uso íntimo, pessoal, secreto - que relação alguma estabelece com as vantagens de mercado ou com os objetivos da produção. Cada poema a seu tempo. Cada poeta com seu tempo. Matéria da poesia, o tempo é uma experiência singular e particular. Tempo de cada um, sempre assim.

Cicero prepara, no momento, uma coletânea de ensaios. Ao mesmo tempo, planeja escrever um livro sobre o niilismo. "Tento mostrar que a filosofia radicalmente ambiciosa, que é aquela em que a razão busca a verdade absoluta e universal, inevitavelmente conduz ao niilismo" (do latim "nihil", isto é, nada). Hoje, apesar de seu apego à poesia, são, sobretudo, as preocupações filosóficas que o movem. Embora considere poesia e filosofia "atividades opostas", apega-se às duas. Enquanto a filosofia depende de uma argumentação que a sustente, a poesia basta a si mesma. São duas paixões antagônicas que, no entanto, ele não consegue separar.

A preocupação central de Cicero, nos dois casos, é sempre com a passagem do tempo. Depois dos 60 anos de idade, começou a se preocupar cada vez mais - como é natural - com a idade, a velhice e a morte. O tempo, mais uma vez, está no coração do poeta. Em seu último livro, "Porventura", ele aparece no centro de poemas como "Balanço", "Palavras Aladas", "Meio Fio" e "Presente". Matéria da poesia, o tempo é também, no caso de Cicero, seu objeto. O tempo que, em seu caso, quase chega a ser um sinônimo de poesia.
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Reportagem Por José Castello

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