sábado, 26 de janeiro de 2013

Juan Gabriel Vásquez discute sua ficção, que evita alegorias do realismo mágico

Autor voltou a morar em Bogotá, após um longo período na Europa - Getty Images
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Autor voltou a morar em Bogotá, após um longo período na Europa

Escritor colombiano venceu o prêmio Alfaguara de 2011 com 'O Ruído das Coisas ao Cair'

Ao inventar um país num dos seus livros publicados no Brasil, História Secreta de Costaguana, que toma emprestado o território criado por Joseph Conrad em Nostromo, o colombiano Juan Gabriel Vásquez não estava transformando a Colômbia em ficção, mas tentando entender a caótica e contraditória História de sua terra natal. Ele volta a ela em seu premiado O Ruído das Coisas ao Cair, que recebeu o prêmio Alfaguara de melhor romance em 2011 e é lançado agora pela editora que empresta seu nome a ele. 

Nascido em 1973, elogiado pelo Nobel peruano Mario Vargas Llosa, e outros escritores de peso, como o espanhol Enrique Vila-Matas, Juan Gabriel Vásquez escreveu O Ruído das Coisas ao Cair fora da Colômbia - ele viveu em Barcelona até o ano passado e volta agora a Bogotá não se sabe se por muito tempo. A razão é simples, como conta na entrevista exclusiva ao Sabático: a vida de expatriado garantiu o distanciamento necessário para entender a realidade colombiana e desvendar a ligação histórica do país com o narcotráfico.
No novo livro, o tema é justamente a amizade de um jovem professor de Bogotá, Antonio Yammara, com um ex-presidiário, Ricardo Laverde, que conhece num bilhar. Ligado ao tráfico de drogas, o último é assassinado. Investigando o crime por conta própria, Yammara descobre mais coisas sobre o passado do amigo morto do que talvez desejasse. Nem alegoria, nem ensaio sociológico, O Ruído das Coisas ao Cair, segundo Vásquez, é ficção pura, desvinculada do realismo mágico do conterrâneo Gabriel García Márquez e próxima dos esforços dos americanos Philip Roth e Don DeLillo para entender o significado da História. A seguir, Vásquez fala dessas e de outras boas influências, como Saul Bellow, escritor nascido no Canadá e que viveu nos EUA, e afinidades eletivas, caso de Alan Pauls, argentino, e Javier Cercas, espanhol.

O hipopótamo do zoológico do narcotraficante Pablo Escobar Gaviria, que cai morto e marca o início de seu romance, representa uma espécie de metáfora da vida em Bogotá nos anos 1980, uma vida associada ao narcotráfico, como você já observou. Acredita que tenha sido criado um gênero literário, o “narcorromance”, com livros como os de Fernando Vallejo, Laura Restrepo e agora O Ruído das Coisas ao Cair? Que tipo de identificação tem você com Vallejo e Restrepo?
Deixemos claro: não acredito que esses sejam “narcorromances”. Laura Restrepo e Fernando Vallejo escreveram alguns dos romances mais importantes das últimas décadas na Colômbia: A Virgem dos Sicários e Leopardo ao Sol. Cada um a sua maneira, definiram uma certa visão a respeito do narcotráfico e suas influências, ocultas ou aparentes, na vida colombiana. Não são narcorromances: são romances inclassificáveis. Ampliaram nossa compreensão do fenômeno e sua relação com a vida privada - e esta é uma das coisas que quis fazer. Se obtive êxito, se meu romance amplia nosso entendimento sobre o narcotráfico e seu impacto na vida íntima das pessoas, se conquistou terrenos de nossa experiência antes não explorados, então não me preocupa muito a pergunta sobre os gêneros. Meu romance se sentiria honrado de estar numa família em que estão Restrepo e Vallejo.

Mas numa entrevista recente você disse que “o narcorromance mais interessante flerta com o romance noir”. Como é escrever sobre a Colômbia vivendo no exterior? Que relação tem com o romance noir?
Disse muitas vezes que foi a distância, a vida de expatriado, que me permitiu escrever sobre meu país. Foram necessários muitos anos de Europa para compreender que o distanciamento e a relação difícil com meu país não eram obstáculos para escrever sobre ele, senão as melhores razões. Minha relação com o romance noir é ocasional e distante: só me interessam os romances que leio sem saber que são do gênero noir, ou podendo esquecê-lo. Nunca me interessei por subgêneros, muito menos pelas regras que impõem: ao se trabalhar dentro de um subgênero, o que mais interessa é romper ou duplicar essas regras.

Embora ambos tratem da problemática colombiana, me parece que, frente à complexidade de Os Informantes, a transparência de O Ruído das Coisas ao Cair presta ao leitor um relato mais completo sobre a sociedade colombiana. Recriar como nasceu o negócio do narcotráfico explica como funciona o poder na Colômbia?
Não uso o verbo “explicar” relacionado a meus romances. Prefiro “explorar”. Creio que olhar para o passado, fazer perguntas sobre o nascimento desse negócio, comparar esse nascimento com o que sucedeu depois, não serve para entender melhor como funciona o poder. Mas não só o poder e não só a Colômbia. Não gostaria que meu romance fosse lido como sociologia ou jornalismo: tratei de fazer perguntas que possam ser pertinentes em outras sociedades, perguntas sobre a ambição, sobre as más consequências das boas intenções, sobre a maneira como a História nos enreda e nos condiciona sem nos darmos conta, sobre o medo, sobre as relações privadas quando as submetemos a certas pressões...

Os Informantes aborda a vida daqueles que durante a Segunda Guerra delataram às autoridades norte-americanas alemães radicados na Colômbia supostamente simpatizantes dos nazistas. O Ruído das Coisas ao Cair mostra que a guerra não acabou na Colômbia, que a intolerância contra o diferente está infiltrada na violência dos cartéis. Os Informantes serve de prólogo para entender episódios violentos da História colombiana?
Não descreveria a violência dos cartéis da droga como “intolerância contra o diferente”: era, simplesmente, uma gigantesca estrutura criminosa projetada para proteger um negócio muito lucrativo. Mas, sim, me parece justo ver em Os Informantes um prólogo indireto do que viria depois: a violência que, no século passado, deixou 300 mil mortos em dez anos, e esse conflito que ainda nos sufoca, cujos atores - guerrilha, paramilitarismo - se alimentam do negócio do narcotráfico. Não creio que exista uma relação causal entre esses fenômenos, mas uma relação simbólica. E para isto servem os romances: para pensar nossa realidade com ferramentas que não são literais, mas metafóricas.

Para retratar a realidade de Bogotá, urbana e contemporânea, suas ferramentas não vieram de García Marquez e da tradição literária associada, de modo geral, à Colômbia, mas de romancistas como Philip Roth, Saul Bellow e Thomas Pynchon. Poderia explicar essa influência norte-americana?
A leitura de certos autores norte-americanos foi decisiva para mim. O que Philip Roth e Don DeLillo fizeram com a História dos EUA - e sua relação com a pequena história, a história dos indivíduos - me deu lições importantíssimas sobre o tipo de romance que queria escrever. Bellow me ensinou a dar corpo narrativo às ideias, a pensar na ficção, a olhar com atenção ao mundo e ouvir a música de seus detalhes. Há muitos outros escritores norte-americanos aos quais me aproximei em busca de respostas, com uma devoção quase religiosa. Penso nos mais evidentes, como Fitzgerald, Hemingway, Faulkner, mas também em outros menos evidentes, como Updike e Doctorow. Sim, é uma literatura que me ensinou muito, e eu tratei de aprender com ela.

Você tem vínculos claros com escritores clássicos como Conrad. Como é sua relação com autores latinos e espanhóis?
Nós, escritores, formamos famílias genéticas, ou, para dizer de outro modo, grupos de afinidades eletivas. Javier Cercas na Espanha e Alan Pauls na Argentina são dois autores com os quais compartilho a mesma ideia do que a ficção pode fazer, por que vale a pena praticá-la, dos lugares a que nos pode conduzir. São autores de romances que leio e admiro e, além de tudo, grandes leitores. Em seus livros, os acontecimentos do mundo exterior são observados com tanto interesse como um ponto ou uma vírgula ou a localização de algo esdrúxulo numa frase. São autores cuja ética literária compartilho.

O Ruído das Coisas ao Cair tem uma densidade alegórica: mostra como cai um país dominado pela droga. Como você vê o futuro da Colômbia?
Sou muito pessimista: a História recente da Colômbia é uma história de violências diversas e, durante os últimos 40 anos, essas violências têm usado o mesmo combustível, o narcotráfico. Ou melhor, foram financiadas pela droga. O tráfico de drogas não só está por trás da época mais dura do terrorismo que vivemos na América Latina. Ele financiou todos os lados do atual conflito. É incalculável, além disso, a deterioração moral e social que causou. E nada disso tem solução possível ou viável se não se legaliza a droga, único mecanismo capaz de acabar com o poder das máfias e sua capacidade corruptora. Mas, até agora, os governos do mundo têm sido consistentemente hipócritas e pusilânimes com o tema.

Que leitura você faz do que se passa na literatura contemporânea?
Não creio que seja possível fazer tal leitura, mas acredito que há mais desconfiança que nunca na ficção. Creio que a sociedade contemporânea deixou de confiar na ficção como uma maneira única e insubstituível de explorar nosso mundo e nossa condição humana. Creio que os modos de pensamento que a ficção propõe - modos ambíguos, baseados no teimoso questionamento de nossa realidade, na vontade de explorar nossos lados mais obscuros sem fechar os olhos - não são muito populares no presente. A ficção que não se resigna a apaziguar o leitor, mas inquietá-lo, que se nega a enganá-lo e busca, ao contrário, dizer as verdades mais dolorosas, essa ficção está desaparecendo porque já não interessa à grande massa dos leitores, cuja consciência foi sequestrada pelo conformismo e pela frivolidade. Nada que, obviamente, seja uma razão para não continuar a escrever.
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Reportagem por  Antônio Gonçalves Filho
Fonte:  http://www.estadao.com.br/25/01/2013

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Romance explora as relações humanas a partir de sociedade regida pelo tráfico

Núcleo do livro de Juan Gabriel Vázquez é a breve amizade entre um professor e o ex-detento com quem jogava bilhar


WILSON ALVES-BEZERRA*
 
“Li em algum lugar que um homem deve contar a história de sua vida aos quarenta anos.” Essa citação quase literal do romance O Poço (1939), do uruguaio Juan Carlos Onetti, serve de mote para o colombiano Juan Gabriel Vázquez dar início às memórias de Antonio Yammara, professor de Direito, nascido em Bogotá nos anos 1970, cuja infância foi marcada pelo suntuoso jardim zoológico do traficante Pablo Escobar e outras lembranças do narcotráfico.
Portal do zoológico de Pablo Escobar, visitado pelo protagonista - infosurhoy.com
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Portal do zoológico de Pablo Escobar, visitado pelo protagonista
 
Eladio Linacero - o protagonista de O Poço - pouco tinha a contar: apenas uma malograda relação sexual com uma amiga da adolescência e as tentativas frustradas de superar aquele fracasso. Prevaleciam a descrença no mundo e a falta de sentido. Dizia ele: “Esta é a noite; quem não conseguiu senti-la assim, não a conhece. Tudo na vida é merda, e agora estamos cegos na noite, atentos e sem compreender”. Há quem tenha associadoÉ possível compreender essa desistência ao clima imperante no final dos anos 30, com a ascensão do nazismo e a eclosão da 2.ª Guerra.

O pesadelo da História, além da chegada aos 40 anos, também são o motor do livro de Juan Gabriel Vázquez. Mas o advogado Yammara mantém um traço juvenil diverso daquele de Linacero: sua crença numa pedagogia da História. Ele se propõe a contar uma experiência traumática “com a plena consciência de que esta história, como se alerta nos contos infantis, já ocorreu antes e voltará a ocorrer”. Com essa citação do narrador de Peter Pan, Yammara se mostra dono de seu relato, e não refém dele, e isso faz toda diferença para a escrita das suas memórias. As certezas lhe limitam o olhar.

Se para Eladio Linacero o desafio era fazer com que seus sonhos e ideais ocupassem um lugar no mundo, para Antonio Yammara a questão é decifrar os enigmas de sua vida pessoal, cujas explicações estão imediatamente dadas pela história de seu país. Linacero escreve um romance fragmentado, vacilante; Yammara, quase uma história de detetives.

O livro de Vázquez propõe um acerto de contas com a história nacional e a memória pessoal; é uma investigação que busca a construção de um sentido: as relações que permeiam uma sociedade cuja regulação está pautada pelo tráfico de drogas ou por sua memória, constituída pela vida cotidiana e pela imprensa. O que poderia ser apenas parte da lembrança de um homem ganha os contornos trágicos da história coletiva. “Demoraria (...) para admitir de novo que as notícias do meu país invadissem a minha vida”, diz um traumatizado e amedrontado Yammara, a certa altura, tentando se livrar do telejornal, substituindo-o por algum seriado norte-americano.

O núcleo do romance é, pois, a evocação, aos 40 anos, da silenciosa e breve amizade entre o protagonista e Ricardo Laverde, ocorrida nos anos 90, quando Yammara, recém-formado, começava sua carreira como professor. Laverde era seu parceiro de sinuca, um ex-detento taciturno que, após 20 anos na cadeia, escolheu o bilhar como forma de estabelecer laço social. Apostava dinheiro e perdia sempre. Um dia, após escutar uma fita Basf que lhe chega misteriosamente às mãos, é alvejado na companhia de Yammara - que ignora tudo sobre o passado e presente do amigo, ex-traficante de drogas.

Laverde morre e Yammara sobrevive, embora o trauma o acosse. E com a perspicácia do cão que corre em direção ao próprio rabo - tamanha sua cegueira em relação ao que está em jogo na morte de Laverde -, ele busca decifrar o enigma do acontecimento. Esta reconstrução é o que constitui suas memórias.

A importância do livro reside nos temas por ele discutidos e na contemporaneidade do relato. A infantilidade de Yammara - jovem melodramático, espectador de seriados, homem que cita Cortázar e Onetti, mas que parece mais inclinado a Peter Pan e Pequeno Príncipe - é marca importante do romance e de nosso tempo. A evocação do passeio furtivo da infância no zoológico de Pablo Escobar é eloquente. O leitor se perguntará se não há outra forma de enfrentar esta violência que não o acossamento e o medo. Não parece haver resposta pacificadora.

Para o leitor brasileiro, cabe a nota de que a tradução de Ivone C. Benedetti apresenta uma escrita fluida de quem sabe lidar com a linguagem, mas esbarra na falta de intimidade com a língua espanhola, deixando-se trair pelo automatismo irrefletido de algumas escolhas. Já o título do livro - El Ruido de las Cosas al Caer - evoca a queda do avião que mata a esposa de Laverde, a queda de Laverde e Yammara (conforme trecho ao lado) e tantas outras quedas ao longo do romance. Pois tais quedas, sempre estrepitosas, são abafadas, quase silenciadas pela escolha da tradução, que transforma o que seria “O barulho das coisas caindo” (em espanhol “ruído” recobre ampla gama sonora) no quase silencioso “O ruído das coisas ao cair”. A sintaxe e o sentido também ficam prejudicados em alguns momentos, como quando um homem se pergunta, em estranho português: “- Que culpa eles têm de nada”, no lugar do que seria simplesmente “Eles não têm culpa de nada” (“Qué culpa tienen ellos de nada.”) Entretanto, tais deslizes não impedem a leitura e fruição do novo romance de Juan Gabriel Vázquez, e tampouco o diálogo que o livro pode estabelecer com o trauma brasileiro pela violência urbana.
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* WILSON ALVES-BEZERRA É TRADUTOR, PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE LETRAS DA UFSCAR E AUTOR DE DA CLÍNICA DO DESEJO A SUA ESCRITA (MERCADO DE LETRAS/FAPESP)
Fonte:  http://www.estadao.com.br/25/01/2013

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