domingo, 17 de fevereiro de 2013

A arte de parar, uma lição que parte da humanidade reluta em aceitar

Itamar Melo*
 A arte de parar, uma lição que parte da humanidade reluta em aceitar Carlos Macedo/Especial

O relojoeiro Jorge Mendes teve de fazer um despertador funcionar no sentido anti-horário 
 Foto: Carlos Macedo / Especial

Ao anunciar sua renúncia, o papa Bento XVI mostrou que é preciso saber o momento certo de se retirar 

Deus descansou no sétimo dia, seu filho deixou o negócio aos 33 anos para subir aos céus e, na segunda-feira, passados dois milênios, o Papa anunciou que vai pendurar a batina e trocar seus vistosos sapatos Prada vermelhos por um par de pantufas.

Aos 85 anos, Bento XVI reconheceu não reunir condições para tocar um empreendimento que perde clientela para a concorrência em ritmo acelerado e carece de renovação na sua linha de produtos.

Os desafios em diferentes áreas

Ele surpreendeu por ser o primeiro papa a renunciar em 600 anos, mas não só por isso. Também causou espanto porque, no topo da carreira, tomou uma atitude contrária à própria natureza humana: deixar voluntariamente uma posição que confere poder, prestígio e fama. Revelou um discernimento que, no dia a dia, não costuma estar ao alcance dos mortais. Soube identificar o momento de cair fora.

Nesse quesito, a tendência geral é ser como João Paulo II e agarrar-se ao osso muito além do limite. Essa é a experiência diária em consultórios como o do geriatra João Senger, onde desfilam idosos que não admitem parar de dirigir, de morar sozinhos ou de trabalhar, mesmo quando manter essas práticas já se tornou um risco para eles próprios e para quem os cerca.

— A coisa mais difícil de envelhecer não é ficar enrugado e de cabelo branco, é aceitar as limitações — observa Senger.

Um outro aspecto do problema é que as pessoas escondem de si mesmas que seu tempo já passou — perpetuando-se à frente de governos, empresas ou instituições culturais — por não terem outra vida a viver. No dizer do psicanalista Mário Corso, colocaram todos os ovos no mesmo cesto. Transformaram a atividade que exercem no seu próprio eu. Abrir mão dela, por isso, significa despersonalizar-se.

— Quem só vive para trabalhar, sem ter outros interesses, hobbies e relações, fica sem uma saída de incêndio. Se existe uma coisa sábia no mundo é saber sair de um lugar — diz Corso.

Uma das consequências dramáticas de não conseguir renunciar é prejudicar a própria atividade. Um empreendedor ou um chefe ultrapassados podem conduzir seu negócio para a beira do abismo. Eles têm algo do ditador que permanece décadas no poder, convencido de que é o melhor para a nação. Impedem que surjam ideias e talentos novos.

Como antídoto, as empresas começam a recorrer a consultorias especializadas em ajudar os profissionais a parar. A Produtive Carreira e Conexões, por exemplo, foi contratada recentemente para lidar com o caso de um funcionário de 78 anos que não conseguia desligar-se do emprego em uma grande empresa no Estado.

Ele já estava aposentado, mas criava subterfúgios para adiar a saída: primeiro disse que continuaria no batente até formar um filho, depois mudou a meta para a compra de um imóvel. A solução foi criar para ele uma nova rotina de vida, com atividades comunitárias, religiosas e de prestação eventual de assistência técnica.

— Psicologicamente, o profissional sente a saída como um luto. Até a volta ao ambiente familiar se transforma em desafio — observa Kátia Ackermann, diretora de relacionamento da Produtive.

Quando a retirada é ainda mais difícil
O doutor em Psicologia Benno Becker Jr., 71 anos, sonha com frequência estar disputando posição no Inter. Goleiro do clube entre 1959 e 1967, acumulou realizações nas décadas seguintes e tornou-se presidente de honra da Sociedade Sul-Americana de Psicologia do Esporte, mas ainda se ressente pela renúncia à carreira de jogador.

— Até hoje é complicado. Dá saudade de estar no centro das atenções — conta.

Jogadores de futebol, assim como celebridades e pessoas que detêm poder, formam um grupo para o qual é especialmente difícil saber parar. Benno tomou a decisão aos 25 anos, depois de notar que as lesões haviam comprometido seu desempenho.

— O jogador é assediado, é conhecido onde quer que vá. Ninguém quer perder isso — completa.

O ex-goleiro identifica que muitos atletas tendem a negar a realidade quando a hora de se retirar chega. Mecanismos de defesa do ego cegam-nos para o evidente declínio físico e técnico. Benno alerta que não saber parar pode trazer consequências graves. Quando lecionava na Espanha, orientou a pesquisa de uma mestranda sobre o destino dos jogadores depois da aposentadoria.

O estudo apontou que jogadores aposentados contra a vontade tendem a cair na depressão e no alcoolismo, o que não acontece com os que identificam sozinhos o momento de parar. O psicanalista Mário Corso entende que as celebridades e os poderosos vivem um drama similar:

— Ser uma figura pública é uma supercachaça. Ninguém quer abrir mão de se sentir amado.

O senhor das horas
Um dia, um cliente apareceu na oficina de Jorge Mendes com um pedido estranho. Queria que um despertador funcionasse no sentido anti-horário. O relojoeiro de 70 anos passou duas semanas debruçado sobre as engrenagens, até atinar com a maneira de fazer as horas andarem para trás.

No mundo real, Mendes sabe que é impossível ir contra o tempo. Até os melhores relógios têm seu limite. Em algum momento, as peças se desgastam e quebram. Há 42 anos na atividade, o profissional diz conhecer a hora certa de parar:

— A minha realização é pegar um relógio estraçalhado e fazê-lo funcionar. Quando não conseguir mais isso, é porque chegou minha hora.
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* Jornalista.
Fonte: ZH on line, 17/02/2013

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