segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

A literatura

 LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL*
 

O ser humano, ao lembrar-se de algo, lembra-se de uma história. Não existe uma evocação abstrata, ou de um fato instantâneo, congelado no tempo. Nesses casos, ocorre uma operação mental em que um fato se sucede a outro, numa se-quência que, quando o contamos a outrem, procuramos dar um andamento mais ou menos lógico. Contamos uma história, enfim; e ao falarmos em histórias, caímos em cheio no terreno da literatura, que, desde sempre, teve a função de imitar a vida – para aceitarmos a ideia tão cara a Aristóteles. Isso é o trivial para alguém quem costuma percorrer os caminhos da cultura. O problema, porém, é quando a literatura abandona essa linearidade e põe-se a sugerir transgressões que, levadas ao extremo, podem instaurar uma perturbadora intransitividade. “Não entendo nada desse livro” – eis um discurso fácil e totalizador, capaz de comprometer a própria existência da obra de arte. Tal como se apresenta, esse raciocínio, embora raso, pode corresponder a uma forma cartesiana de entender o mundo, e como tal, tem seu valor. Nossa verdade interior, porém, em que pese a busca da linearidade, não é lógica e, nas evocações, há avanços e recuos, há desvios – hiperlinks involuntários – que, na maioria das vezes, tornam-se mais importantes do que a história. Esse é um procedimento nem sempre visível e consciente, e fascinamo-nos com os rumos de nossa capacidade evocadora. A questão é quando isso vem representado numa obra literária a qual “não deveria” enveredar por esses caminhos escuros da mente. A literatura, nessa disputa sem quartel, acaba por ser a responsável pela sua própria incongruência pois, em vez de organizar o universo, acaba por desconstituí-lo e desautorizá-lo. Cabe ao leitor aceitar sua perturbação pessoal e admitir que, fosse para representar com fidelidade a vida, a literatura estaria incorrendo no erro julgar que a vida toda é coerente, quando sabemos que não o é. Que o diga a teoria do caos. Para arrematar essa conversa algo esotérica: a literatura não é culpada de suas assimétricas construções; talvez devêssemos indigitar a vida por não se comportar como nós desejamos. A literatura, nesse patamar reflexivo, nem é tão inovadora; a vida, sim, é inovadora. Queiramos ou não. Isso pode ser um anátema, sim, mas também pode ser um imenso consolo. O resto, como diz jovem príncipe da Dinamarca, é o silêncio.
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* Escritor.
Fonte: ZH on line, 11/02/2013
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