domingo, 31 de março de 2013

Peixe

Rubem Alves*

Tenho estado fazendo uma pergunta às pessoas religiosas: “Por que não se come carne na semana santa e se come peixe?” Até agora a única resposta que ouvi é: não se come carne porque comer carne é o mesmo que comer a carne do Filho de Deus. Resposta tola, sem fundamento eucarístico. Não se come carne e se come peixe precisamente para se comer a carne de Cristo! Pois, o que é a eucaristia? Não é uma refeição em que se come precisamente a carne e se bebe o sangue de Cristo? Foi ele mesmo que assim explicou o sacramento. E onde é que entra o peixe? Todo mundo sabe que o peixe é o símbolo do cristianismo. Símbolo, por quê? A palavra “peixe”, em grego, é “IXTHUS”. Os cristãos viram nessa palavra uma confissão de fé, representada por cada letra: “I”, Jesus; “X”, Cristo; “TH”, de Deus; “U”, o filho; ‘S”, salvador. Come-se peixe precisamente para se comer a carne de Cristo. Come-se peixe para participar da eucaristia.

Ovo de chocolate

Um lixeiro bateu a minha porta para me desejar uma “feliz Páscoa”, na esperança de que minha resposta seria uma nota de dez reais. Aí, só de maldade, eu disse: “Lhe dou se você me disser o que é Páscoa”. Ele não hesitou, sabia muito bem o que era Páscoa: “Páscoa, doutor, é aquele dia quando a gente compra uns ovos de chocolate para as crianças...” Dei-lhe os dez reais. Todo mundo sabe que Páscoa é dia de comer ovos de chocolate. O lixeiro sabia o que todo mundo sabe. No domingo de Páscoa todos dão, como presentes, ovos de chocolate.

Se eu dissesse para o lixeiro que Páscoa é dia de poesia ele não entenderia. A poesia se faz com metáforas. As metáforas são mentirosas. O carteiro, amigo do Neruda, disse: “Sou um barco batido pelas ondas”. Mentira. Ele era um carteiro. Não era um barco batido pelas ondas. Nenhuma pessoa, jamais, foi um barco batido pelas ondas. No entanto qualquer pessoa sabe o que o carteiro queria dizer. Sabe, porque todos nós nos sentimos, por vezes, como barcos batidos pelas ondas. Esse sentimento, entretanto, não pode ser dito em linguagem literal. A poesia é a linguagem das coisas que não podem ser ditas. O poeta diz a sua própria experiência. Mas esta fala, nascida dos sentimentos dele, individuais, tem um poder de reverberação. Ao bater em nós – como o repicar de um sino, ao longe – o corpo estremece emocionalmente. Esse estremecer é a prova de que o poeta, dizendo o absolutamente particular, disse o absolutamente universal.

A Páscoa é um poema. Metáfora. Fala sobre o nosso destino, diante da Morte. Ou, de maneira mais precisa, fala do destino da Vida, diante da Morte. Há uma lei da ciência, a 2ª lei da termo-dinâmica, que diz que o destino do universo é a morte. No fim dos tempos, o universo morrerá. Isso me dá uma grande tristeza. Para dizer a verdade, não me importo muito com a minha eternidade. Mas pensar que o universo vai morrer, isso é muito triste. Adeus barcos, gaivotas, árvores, pássaros, cachorros, crianças, música, amizade, comida, amor: tudo se transformará em nada, eternamente. A morte é o fim. Pois a metáfora da Ressurreição é uma afirmação louca de que a verdade é o contrário: a morte se transformará em vida. Essa afirmação poética está contida na metáfora de um homem que, havendo descido à sepultura, voltou a viver. A semente é enterrada. Se continuar como sempre foi, morrerá. Mas se morrer, brotará como árvore. Todo túmulo é um canteiro.

A função dos dias sagrados, quando se faz uma interrupção nas rotinas da vida, é fazer pensar. Ovos de Páscoa nos fazem pensar. O poema da Ressurreição nos obriga a pensar. A estória não é história, um relato do que aconteceu no passado e, por que aconteceu no passado, nunca mais vai acontecer. A estória da Ressurreição é algo que não aconteceu porque acontece sempre. Ela não pertence ao tempo. Pertence à eternidade. E o eterno não é o tempo sem fim, mas o tempo que é sempre presente. A metáfora de Páscoa nos questiona sobre o que estamos fazendo com a nossa própria vida. Versos de Whitman: “Quem anda duzentas jardas / sem vontade / anda seguindo o próprio funeral / vestindo sua própria mortalha”. Há muitos mortos com a aparência de vivos. A estória da Ressurreição é um desafio para nos livrarmos da mortalha.

Mas o poema, numa outra estrofe, diz que o Ressuscitado subiu aos céus — uma forma poética de dizer que o corpo, a vida, enche o universo inteiro. Na linguagem dos reformadores protestantes o corpo de Cristo é “ubiquo”— está em todos os lugares, até na mais efêmera flor, no menor grão de areia, no mais singelo gesto de amor. Por detrás dos espaços infinitos e do silêncio das estrelas que horrorizava Pascal, há um Rosto que nos olha tranquilamente e nos desafia a sair das sepultura e a viver.
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* Escritor. Educador.
Fonte:  http://correio.rac.com.br/_conteudo/2013/03/30
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NA PAREDE

 Martha Medeiros*
 

Existem diversas maneiras de se conhecer uma pessoa, não só através do que ela diz, mas também através de seus gostos, atitudes, preferências, escolhas. Por exemplo, uma das maneiras de sermos traduzidos é avaliarem o que penduramos na parede. O que as suas paredes revelam sobre você?

Lembro do quarto da minha infância. Na parede atrás da cama havia o quadro de uma menininha de tranças, com as palmas das mãos unidas, rezando ao lado do seu gatinho. Não era escolha minha, mas eu não desgostava, era uma imagem que me transmitia conforto e segurança. Aí veio a adolescência, e a menininha rezando foi trocada por um pôster do David Cassidy. Começava ali a manifestação pessoal das minhas transformações internas.

Assim que minhas filhas tiveram seus próprios quartos, permiti que usassem as paredes como preferissem. A casa é dos pais, mas o quarto é território de livre expressão, onde seu ocupante começa a criar o quebra-cabeça da sua identidade. Circulam por suas paredes cartazes de shows, fotos de amigos, desenhos de próprio punho, cartões-postais. Aliás, cartões-postais é uma paixão familiar: no meu escritório, emoldurei dezenas deles reunidos. Nenhum com imagens de cidades, nada de paisagens convencionais – são cartões artísticos que trazem propagandas de filmes, fotos em preto e branco, estímulos visuais os mais variados. Cada um desses cartões reflete as coisas que amo: cinema, música, poesia, humor, erotismo, cotidiano. Um caleidoscópio estimulante e que me situa – olho para eles e me sinto em casa, mesmo.

Pessoas usam as paredes para pendurar calendários, relógios, fotos de família, espelhos, objetos trazidos de viagens, mandalas, telas de seus pintores preferidos, imagens ligadas ao esporte, tudo que traga substância e prazer para conduzir os dias. Ou mantém as paredes nuas, que também é uma forma de expressão – o minimalismo comunica tanto quanto. A parede é o antepassado do Facebook, só que é uma página mais íntima e acolhedora: apenas têm acesso aqueles que fazem parte do nosso universo real, off-line.

Desperdício é quando a parede é utilizada com um fim apenas decorativo, sem nenhuma sintonia com os sentimentos e com a identidade do morador. O uso das paredes de forma protocolar, burocrática, torna a casa mais triste do que alegre, por total falta de inspiração do proprietário.

Use suas paredes. Troque as cores de vez em quando. Mude os quadros de lugar. Crie os seus. Invente moda. Acabo de encomendar com o superdiretor de arte Moisés Bettim uma tela que traz Woody Allen pintado ao estilo Andy Warhol – viva a pop art. Onde pendurarei? Sei lá: na sala, no quarto, no banheiro, na cozinha, na sacada ou possivelmente no nicho que me serve de escritório – os cartões-postais hão de gostar da companhia. E a casa, preenchida de uma atmosfera tão diversa, habitada por tantos apelos e referências, ficará ainda mais parecida comigo.
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* Escritora. Cronista da ZH
Fonte: ZH on line, 30/03/2013

sábado, 30 de março de 2013

Jovem se recusa a pisar no nome de Jesus e é suspenso

Um professor universitário sugeriu a seus alunos que escrevessem o nome “Jesus” num pedaço de papel e pisassem sobre ele, como parte de um exercício sobre debates durante uma aula de Comunicação Intercultural. Entretanto, um dos alunos se recusou a fazer o que havia sido pedido pelo professor e foi suspenso pela direção da Florida Atlantic University. O estudante que se recusou a pisar no nome de Jesus é um mórmon, e disse que se sentiu desrespeitado: “Eu não vou ficar sentado em uma classe para ter meus direitos religiosos profanados, e como eu estou sendo punido, vejo realmente dessa forma”, disse Ryan Rotela. Já o professor Deandre Poole alegou que estava tentando ensinar aos alunos uma “lição de debate”, e que isso seria uma forma de forçar os alunos a enxergarem outras perspectivas.
A diretora da universidade afirmou à Fox News que, “como em qualquer lição acadêmica, o exercício foi feito para incentivar os alunos a ver as questões a partir de muitas perspectivas, em relação direta com os objetivos do curso”, e que, “apesar de, por vezes, os temas discutidos poderem ser sensíveis, um ambiente universitário é um espaço para diálogo e debate”, afirmou Noemi Marin.
Suspenso, Rotela, no entanto, se mantém criticando a iniciativa: “Eu disse para o professor: ‘Com todo o respeito à sua autoridade como professor, eu não acredito que o que você nos disse para fazer seja apropriado. Acredito que foi pouco profissional e eu estava profundamente ofendido com o que você me disse para fazer’”, revelou o estudante.
A universidade e o professor Poole defendem-se ainda citando que o exercício é proposto pelo material didático usado nas aulas, e faz parte do livro Comunicação Intercultural: Uma Abordagem Contextual. Edição 5, que trata o exercício como o princípio de uma discussão: “Peça aos alunos para se levantar e colocar o papel no chão, na frente deles com o nome Jesus para cima. Peça aos alunos para pensar sobre isso por um momento. Depois de um breve período de silêncio, instrua-os para a etapa no papel. A maioria hesitará. Pergunte por que eles não podem pisar no papel e discuta a importância dos símbolos na cultura”, diz o texto.
Paul Kengor, diretor executivo do Centro para a Visão e Valores afirmou que essa lição é um exemplo direto de como a sociedade secular tem o cristianismo como um alvo: “Esses são os novos discípulos seculares da ‘diversidade’ e ‘tolerância’- jargões vazios que fazem os liberais e progressistas se sentirem bem, enquanto eles muitas vezes se recusam a tolerar e às vezes até tomar de assalto as crenças cristãs tradicionais e conservadoras”, criticou.
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Fonte: http://www.criacionismo.com.br/2013/03/29

Três narrativas essenciais na modernidade (*)

Paulo Ghiraldelli Jr

 

Qual a utilidade da filosofia? Em princípio, essa pergunta é tola. Afinal, Platão, o inventor da filosofia como gênero literário, idealizou-a como uma narrativa especial e específica, distinta da narrativa do sofista, tipicamente utilitária. A filosofia seria uma narrativa diferente da narrativa do útil.

Enquanto personagem de Platão, Sócrates insistia em dizer que procurava a verdade e que o que dizia era verdadeiro, não simplesmente o útil. O filme de Roberto Rosselini, “Sócrates”, insiste nesse ponto, dando uma interpretação interessante da obra de Platão. O sofista, por sua vez, tanto na visão platônica quanto na visão que tinha de si mesmo, não procurava a verdade. Isso, no entanto, não porque gostasse do falso e da mentira, mas simplesmente porque entendia que ao falar, já estava sempre na verdade, uma vez que tudo que qualquer um pudesse pensar e dizer, uma vez pensado e dito, seria verdadeiro.

Essa tese do sofista não era nenhuma bobagem. Estava baseada em um filósofo importante, que Platão respeitava muito: Parmênides. Esse filósofo havia dito que podemos falar do “que é”, mas não temos como falar do que “não é”. O que não é, o falso, não pode ser dito, pois uma vez dito, estaria produzindo “o que não é” como “o que é”. Ora, mas o que não é, não é! Falamos do ser, do não-ser, não falamos. Em outras palavras: o discurso do que chamamos de falso não seria possível. Platão resolveu esse problema de modo técnico, garantido que aquilo que fazemos é perfeitamente correto e possível: pronunciamos discursos falsos tanto quanto pronunciamos discursos verdadeiros. Fazemos assim, ao menos em várias situações, por meio de usar o diferente, e não exatamente o “não-ser”. Nesse sentido, a busca do filósofo pela verdade, o que implica em distingui-la do falso, foi mostrada por Platão como uma prática com sentido e perfeitamente legítima.

Desse modo, Platão tornou possível o discurso da filosofia e da ciência, e criou um espaço social para tal discurso: a academia ou a universidade. O discurso da academia, isto é, o discurso acadêmico, teria por objetivo a verdade. E o discurso do sofista, cujo objetivo era o útil, desapareceria?

Bem, de certo modo, Platão quis fazê-lo senão desaparecer, cair para o segundo plano. Platão desejou fazer com o sofista aquilo que o sofista vinha fazendo com o filósofo. Platão quis que o discurso acadêmico se pusesse na academia, claro, mas também na política. Então, no projeto platônico, cabia a ideia de que os jovens da elite não iriam mais ficar à mercê da educação sofística, própria para a política, para a Ágora. Eles seriam educados filósofos e comandariam a cidade. Comandariam a cidade sob a luz da verdade e, portanto, fariam a cidade justa permanecer justa. O discurso propriamente político, o discurso da democracia ateniense, que pelo útil trabalhava consensos a cada passo na administração da cidade, não teria dado bom resultado, segundo Platão. Afinal, a política só havia criado balbúrdias e injustiças, ou seja, guerra de grupos e a própria condenação de um homem justo e inocente: Sócrates.

Assim, podemos dizer que o mundo antigo foi palco do confronto entre três grandes narrativas. Sim, porque as narrativas do sofista e do filósofo, que disputavam terreno entre si, também se opunham à narrativa mais velha, a do poeta ou rapsodo, a narrativa da religião, ou seja, da mitologia. Essas três grandes narrativas compunham a Paideia grega, a ar espiritual que cada grego poderia usufruir na sua formação cultural.

Nós modernos, somos herdeiros dessa cultura tripartida. Todavia, somos modernos não pelo tempo, mas justamente porque começamos a acreditar que a disputa entre essas narrativas não precisaria ser levada adiante de modo sanguinário e com propósito de eliminação do rival. Poderíamos e deveríamos encontrar espaços próprios para cada uma delas. De certo modo isso ficou refletido na filosofia de Kant e foi visto por Max Weber com uma característica própria dos “tempos modernos”.

Nas sociedades modernas, onde funciona a democracia liberal, tentamos conviver com as três grandes espécies de narrativas: a filosófica ou científica, a política e a mitológica ou religiosa. Nessa sociedade, temos três instituições para acolher essas três narrativas, respectivamente: a universidade, o parlamento e a Igreja ou igrejas. Com a primeira, fazemos investigação sobre a verdade, o que fixamos por meio de conceitos e definições. Com a segunda, conversamos sobre o útil, de modo a criarmos possibilidades de persuasão mútua, da qual emergem consensos e acordos. Com a terceira, professamos nossa fé e louvamos nossos antepassados e nossa história por meio de nossa vinculação aos deuses, além de, não raro, os vermos como fonte de educação ética e moral, dando-nos identidade cultural e esperança.

Nosso projeto pedagógico no Ocidente moderno, herdeiro do humanismo e do Iluminismo, foi temperado e retemperado. Ele considera que a juventude deve aprender as três espécies de narrativas e, para tal, mantém uma instância própria onde isso deve ocorrer: a escola. O jovem que quer adentrar na sociedade moderna ocidental, uma vez na escola básica e, depois, na secundária ou pré-universitária, deve aprender a usar das três narrativas e saber como e quando cada uma tem seu valor. Deve, inclusive, saber que às vezes há cruzamentos, como no caso do pragmatismo (de Peirce, James e Dewey), que faz a prática de busca da verdade olhar para a prática da busca do consenso, ou seja, a prática característica da política. Deve entender que há quem possa usar da fé religiosa para a investigação da verdade, como fez Santo Agostinho, para quem a fé era o facho de luz atrás da cabeça, que não lhe dava visão dogmática, mas ampliava o campo iluminado garantindo-lhe, adiante, um mundo com sentido e, portanto, apreensível pelo intelecto.

Quando alguns adultos acham que as crianças devem aprender essas três narrativas de maneira incompleta, o que fazem é mudar o quadro das disciplinas tradicionais de nossa escola. E o que pior podem fazer quando assim agem, é retirar dos alunos um modo de aprender a distinguir narrativas e gêneros literários. Para fazer o pior, eles tiram da escola a filosofia. Criam então pessoas que não sabem o valor das narrativas e seus lugares. Criam pessoas propensas a acreditar que podemos suprimir narrativas. Geram os que, ao levarem adiante o cultivo da eliminação, abrem portas e janelas ao demônio. E este é habilidoso em dizer o seguinte: para eliminar narrativas, o melhor modo é eliminar o narrador. Assim, disputas entre discursos ganham um sobrediscurso que se põe como legítimo: o da violência.  Logo, é a própria violência que se instaura, suprimindo todo e qualquer discurso.

A utilidade da filosofia é esta: a de cultivar as propriedades das narrativas, de modo que a violência não seja a única prática que possa parecer legítima. Nós filósofos acreditamos nisso, que podemos driblar o demônio. Somos ingênuos? Ah, sim, sem dúvida. Apesar de Platão, nosso patrono, ter desejado eliminar o sofista ou o político, nós, filósofos liberais e democráticos, modernos, nunca quisemos isso. Apostamos na filosofia não como o que pode falar mais ou de maneira melhor que outras narrativas, mas como a que tem tempo para falar sobre todas de maneira a arbitrar o conflito entre elas, sem deixar que elas se destruam ou sejam destruídas por força externa. Por isso mesmo Richard Rorty, o filósofo americano falecido em 2007, deixou como título-proposta de sua última obra, “a filosofia como política cultural”.
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© 2013 Paulo Ghiraldelli Jr. é filósofo, escritor, cartunista e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
(*) Artigo feito a pedidos do prof. Balestra, da Espanha, a propósito da tentativa de retirada de horas de filosofia do ensino básico espanhol por parte do governo.
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Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/2013/03/tres-narrativas-essenciais-na-modernidade/

A Nossa Caverna

Luiz F. Sardinha*
O Mito da Caverna – ou Alegoria da Caverna – escrito pelo filósofo grego Platão, é uma das maiores referências filosóficas a respeito da realidade e da ilusão. Ou, como diria o filósofo, um contraste entre o mundo sensível (aquele que observamos através dos sentidos) e o mundo das ideias (aquele alcançado através de intensa reflexão).

No livro VII de “A República”, Platão narra o Mito da Caverna, alegoria da teoria do conhecimento.
 
Imaginemos uma caverna separada do mundo externo por um alto muro, cuja entrada permite a passagem da luz exterior. Desde seu nascimento, geração após geração, seres humanos ali vivem acorrentados, sem poder mover a cabeça para a entrada, nem locomover-se, forçados a olhar apenas a parede do fundo, e sem nunca terem visto o mundo exterior nem a luz do Sol. Acima do muro, uma réstia de luz exterior ilumina o espaço habitado pelos prisioneiros, fazendo com que as coisas que se passam no mundo exterior sejam projetadas como sombras nas paredes do fundo da caverna. Por trás do muro, pessoas passam conversando e carregando nos ombros figuras de homens, mulheres, animais cujas sombras são projetadas na parede da caverna. Os prisioneiros julgam que essas sombras são as próprias coisas externas, e que os artefatos projetados são os seres vivos que se movem e falam. Um dos prisioneiros, tomado pela curiosidade, decide fugir da caverna. Fabrica um instrumento com o qual quebra os grilhões e escala o muro. Sai da caverna, e no primeiro instante fica totalmente cego pela luminosidade do Sol, com a qual seus olhos não estão acostumados; pouco a pouco, habitua-se à luz e começa ver o mundo. Encanta-se, deslumbra-se, tem a felicidade de, finalmente, ver as próprias coisas, descobrindo que, em sua prisão, vira apenas sombras. Deseja ficar longe da caverna e só voltará a ela se for obrigado, para contar o que viu e libertar os demais. Assim como a subida foi penosa, porque o caminho era íngreme e a luz ofuscante, também o retorno será penoso, pois será preciso habituar-se novamente às trevas, o que é muito mais difícil do que habituar-se à luz. De volta à caverna, o prisioneiro será desajeitado, não saberá mover-se nem falar de modo compreensível para os outros, não será acreditado por eles e correrá o risco de ser morto pelos que jamais abandonaram a caverna.
 
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Então, quando  o que observamos no mundo com os nossos sentidos passa a ser uma verdade absoluta, agimos como os habitantes da caverna de Platão, só conseguimos enxergar as sombras do que nos é mostrado. Na vida, devemos refletir sempre e profundamente, antes de aceitarmos as verdades sombrias daquilo que muitas vezes nos é imposto, pela sociedade, pela mídia, pelas religiões e até pelas pessoas que achamos que nos ama e aquelas que amamos.
 
O conhecimento, representado pela luz, nos dá chance de evoluir, mas para alcançar essa luz é necessário romper com as correntes que nos predem dentro das nossas cavernas.
Até a próxima.
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* Psicanalista.
Fonte:  http://jornalterceiravia.com.br/26/03/2013
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sexta-feira, 29 de março de 2013

99 coisas para fazer antes de morrer

time_people

“Quem passou pela vida em branca nuvem. 
E em plácido repouso adormeceu. 
Quem não sentiu o frio da desgraça. 
Quem passou pela vida e não sofreu. 
Foi espectro de homem, não foi homem. 
Só passou pela vida, não viveu”
assim escreveu o poeta Francisco Otaviano. E mesmo sabendo que palavras não dizem muito — que atitudes dizem mais —, sugerimos uma lista de 99 pequenos e grandes gestos que, obviamente não irá mudar a vida de ninguém, mas poderá nos mostrar que a vida é curta para não ser pequena.
1 — amar, amar de novo, amar sempre
2 — trocar a parceria, se já não é mais possível a cumplicidade
3 — religar um sonho de juventude e se apaixonar perdidamente
4 — checar os instrumentos de voo, sem deixar que o amor à segurança lhe roube o amor à liberdade
5 — morar num país de cultura não-ocidental
6 — ler Finegans Wake, de James Joyce
7 — parar de elogiar Faulkner ou Clarice Lispector só porque os outros elogiam
8 — ler a Bíblia acompanhada de um bom dicionário bíblico
9 — trocar um vício por um novo hábito
10 — passar uma semana num mosteiro ouvindo o silêncio ou o zoar de seus ouvidos
11 — fazer amizade com uma pessoa excêntrica
12 — trocar o emprego por uma diversão, ainda que receba menos
13 — investir na bolsa e jogar num cassino
14 — praticar rapel ou canoagem
15 — faltar a um compromisso sem razão plausível
16 — negar um aval (ou todos)
17 — ficar uma semana sem tomar banho
18 — fazer tatuagens
19 — acrescentar ao seu o sobrenome de um ancestral
20 — examinar suas preferências como se você fosse outra pessoa
21 — perdoar a quem lhe ofendeu
22 — vingar uma maldade
23 — ir ao velório de um desafeto sem ódio e não rezar por ele
24 — dar a você mesmo um presente caríssimo
25 — admitir que errou e tirar experiência do erro
26 — ganhar dinheiro, depois achá-lo irrelevante
27 — não lamentar o tempo perdido
28 — aproveitar o tempo que ainda lhe resta
29 — valorizar as pessoas ao seu redor, por mais humildes que sejam
30 — aprender com os estúpidos
31 — não acreditar 100% em algo ou alguém
32 — converter decepção em ânimo novo
33 — duvidar do fracasso, bem como do sucesso permanente
34 — viver a vida como única, e o instante como último
35 — plantar uma dúvida e disseminar a consciência
36 — descrer das verdades estabelecidas
37 — ver o trivial como um mistério
38 — comover com uma coisa à-toa
39 — mudar para um sítio e cultivar a vizinhança
40 — dormir em rede numa casa construída sobre árvore
41 — aconselhar-se com uma criança
42 — duvidar da auto-ajuda e saltar no vazio com as redes da intuição
43 — fugir da automedicação
44 — suspeitar do médico
46 — ver o outro lado, olhar ao derredor, inclusive por baixo
47 — tomar decisão, apesar da dúvida
48 — descartar o excesso
49 — comprar uma roupa que nunca vai usar, pensando que vai
50 — cantar ópera (no banheiro)
51 — dar um presente a um desconhecido
52 — formar um jardim de ervas daninhas
53 — ter um réptil de estimação
54 — pertencer a uma sociedade secreta ou uma tribo urbana (emo, siriemo, gótico etc)
55 — ir a um terreiro de macumba
56 — achar o pouco bastante
57 — achar o pleno excessivo
58 — lutar espadachim ou esgrima
59 — fortalecer os ossos e os neurônios
60 — fazer sexo em grupo
61 — consultar uma cartomante
62 — aprender tarô só pelo gosto de duvidar
63 — achar Nova York decadente
64 — achar bregas as mulheres de topless na Côte D’azur
65 — afixar no quarto um calendário de borracharia
66 — namorar o(a) porteiro(a)
67 — desposar um(a) príncipe(esa)
68 — revelar um segredo
69 — guardar um segredo para sempre
70 — envergonhar-se das vezes em que não foi honesto
71 — beber absinto e sentir o cheiro das estações
72 — comer bumbum de tanajura numa tribo
73 — passar um dia inteiro com a mãe falando de velhos acontecimentos
74 — atravessar o país de bicicleta
75 — dormir num estábulo
76 — fazer amor no feno
77 — andar a cavalo em pelo
78 — rir do prejuízo que levou (só Deus sabe de antemão o negócio que vai dar certo)
79 — sair pelado(a) no carnaval
80 — declamar Maiakósviski numa festa de empresários
81 — falar de Peter Drucker num encontro de poetas
82 — plantar bananeira na Câmara Federal
83 — dar uma banana pro Senado
84 — chamar um ministro do Supremo de Psit
85 — mijar no Memorial JK
86 — propor pagar uma dívida com a entrega de um rim
87 — ir a pé à festa da padroeira
88 — posar para foto cruzando a faixa da Abbey Road
89 — tomar chope num pub londrino de costas para McCartey
90 — aprender um ofício inútil
91 — namorar sem pensar em casamento
92 — casar com a mesma convicção com que namora
93 — começar um empreendimento depois dos 80
94 — vender um negócio extremamente promissor
95 — lembrar que o passado não existe, que o futuro não existe e que o presente é duvidoso
96 — ver que nem tudo que brilha é lantejoula
97 — separar o trigo do joio e colher o joio
98 — conquistar algo sem dar a alma em troca
99 — manter a serenidade diante de uma perda radical por saber que amanhã será outro dia
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Fonte: http://www.revistabula.com/243-99-coisas-para-fazer-antes-de-morrer/

Papa Francisco: inaugura o terceiro milênio?

Leonardo Boff*
 
O primeiro milênio do Cristianismo foi marcado pelo paradigma da comunidade. As igrejas possuíam relativa autonomia com seus ritos próprios: a ortodoxa, a copta, a ambrosiana de Milão, a moçárabe da Espanha e outras. Veneravam seus próprios mártires e confessores e tinham suas teologias como se vê na florescente cristandade do norte da África com Santo Agostinho, São Cipriano e o leigo teólogo Tertuliano. Elas se reconheciam mutuamente e, embora em Roma já se esboçasse uma visão mais jurídica, predominava a presidência na caridade.

O segundo milênio foi caracterizado pelo paradigma da Igreja como sociedade perfeita e hierarquizada: uma monarquia absolutista centrada na figura do Papa como suprema cabeça (cefalização), dotado de poderes ilimitados e, por fim, infalível quando se declara como tal em assuntos de fé e moral. Criou-se o Estado Pontifício, com exército, com sistema financeiro e legislação que incluía a pena de morte. Criou-se um corpo de peritos da instituição, a Cúria Romana, responsável pela administração eclesiástica mundial. Esta centralização gerou a romanização de toda a cristandade. A evangelização da América Latina, da Ásia e da África se fez no bojo de um mesmo processo de conquista colonial do mundo e significava um transplante do modelo romano, praticamente anulando a encarnação nas culturas locais. Oficializou-se a separação estrita entre o clero e os leigos. Estes, sem nenhum poder de decisão (no primeiro milênio participavam na eleição dos bispos e do próprio Papa), foram juridicamente e de fato infantilizados e mediocrizados.

Firmaram-se os costumes palacianos dos padres, bispos, cardeais e Papas. A títulos de poder dos imperadores romanos, a começar pela de Papa e a de Sumo Pontífice, passou ao bispo de Roma. Os cardeais, príncipes da Igreja, se vestiam como a alta nobreza renascentista e isso permaneceu até os dias de hoje para escândalo de não poucos cristãos habituados a ver Jesus pobre e homem do povo, perseguido, torturado e executado na cruz.

Este modelo de Igreja, tudo indica, se encerrou com a renúncia de Bento XVI, o último Papa deste modelo monárquico, num contexto trágico de escândalos que afetaram o núcleo da credibilidade do anúncio cristão.

A eleição do Papa Francisco, vindo "do fim do mundo” como ele mesmo se apresentou, da periferia da cristandade, do Grande Sul, onde vivem 60% dos católicos, inaugura o paradigma eclesial do Terceiro Milênio: a Igreja como vasta rede de comunidades cristãs, enraizadas nas diferentes culturas, algumas mais ancestrais que a ocidental como a chinesa, indiana e japonesa e nas culturas tribais de África e comunitárias da América Latina. Encarna-se também na cultura moderna dos países tecnicamente avançados, com uma fé vivida também em pequenas comunidades. Todas estas encarnações tem algo em comum: a urbanização da humanidade pela qual mais de 80% da população vive em grandes conglomerados de milhões e milhões de habitantes.

Neste contexto será praticamente impossível de se falar em paróquias territoriais; mas, em comunidades de vizinhança de prédios ou de ruas próximas. Esse cristianismo terá como protagonistas os leigos, animados por padres, casados ou não ou por mulheres-sacerdotes e bispos ligados mais à espiritualidade do que à administração. As Igrejas terão outros rostos.
A reforma não se restringirá à Cúria Romana em estado calamitoso; mas, se estenderá a toda a institucionalidade da Igreja. Talvez somente com a convocação de um novo Concílio com representantes de toda a cristandade dará ao Papa a segurança e as linhas mestras da Igreja do Terceiro Milênio. Que não lhe falte o Espírito.
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* Escritor. Filósofo. Teólogo.
Fonte:  http://www.adital.com.br/site/28/03/2013

“Não há mudança ética ou moral sem crise”

Roberto Romano - Antoninho Perri.

 O professor Roberto Romano explica como nosso conceito de ética é relativo a tempos e sociedades
 e aponta o que ainda é preciso melhorar na política brasileira
                                                               Foto: Antoninho Perri

É possível que os nossos princípios éticos mudem com o passar do tempo? Analisando a História da civilização ocidental, entendemos que sim. A ética do homem se transformou e continuará se transformando. É o que explica Roberto Romano, professor de Ética e Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Para isso, ele retoma a origem da palavra, na Grécia Antiga. E chega aos problemas dos dias de hoje na política brasileira. Confira a entrevista que Roberto Romano concedeu a Página22 para a edição 72 “Poder”.

A ética tem como base os valores históricos e culturais? Como podemos analisar uma evolução da ética em nossas sociedades?
É preciso começar explicando a palavra “ética” que surgiu na Grécia como hexis e significava “postura”. A Grécia era uma sociedade guerreira, principalmente em Esparta. Meninos e meninas aprendiam desde cedo a ter uma postura corporal correta para os exercícios militares. Se eles não andassem, corressem e se movimentassem corretamente, colocariam a cidade em risco porque a guerra exige pleno domínio do corpo. Se uma pessoa não aprende a ter a postura correta desde jovem, nunca mais terá uma boa postura.
Por metáfora, aquela ideia passou a ser a boa postura da mente: era preciso aprender a raciocinar e ter valores corretos para que se exercesse a cidadania. Então, passou a ser importante também ensinar os meninos e meninas uma boa ética espiritual, de valores, a maneira de se comportar.
Quem aprende a andar e pensar de forma correta faz isso automaticamente depois. Mas uma pessoa que, quando criança, aprende a desprezar quem é de outra cor ou condição social irá agir dessa maneira por muito tempo porque essa é a forma como ela é. É preciso ter muito cuidado com o automatismo, com a inconsciência da ética.  O habito é um dos piores tiranos que uma pessoa pode ter. Se habituar a uma forma de agir é ser escravo dessa forma.

Como diferenciamos ética e moral?
A ética é um comportamento essencialmente coletivo e social. Não existe ética individual. Ela existe na sociedade – seja boa ou má – e é aprendida e modificada pela ação da própria sociedade. O indivíduo tem um peso bastante relativo nessa modificação.
Sócrates proclama que prefere seguir a consciência dele aos costumes e crenças da coletividade. Quando oferecem a ele a oportunidade de fugir da condenação à morte, ele diz “Minha consciência exige que eu siga o julgamento e responda pelas minhas ideias”. A moral é o campo do indivíduo, de sua consciência diante da coletividade. O indivíduo pode aceitar ou se revoltar contra a ética vigente em sua sociedade.
Se a ética vigente é devastar a natureza as pessoas que acham que isso é normal e continuarão a fazê-lo automaticamente. As que adquirem uma percepção de mundo diferente da sociedade onde ela vive, vai agir moralmente. Durante o regime do nazismo na Alemanha, era normal sair às ruas dizendo “Viva Hitler” e achar que as pessoas consideradas inferiores, como negros e judeus, deveriam ser exterminadas. Agora, moral eram os que se insurgiam contra isso.
Embora mais frágil porque há uma face do individual, a moral é mais exigente e mais difícil. Se você está na Alemanha nazista e é branco de olho azul, por que dizer que é errado matar ciganos ou homossexuais? A moral exige muito mais coragem e lucidez do indivíduo.
Não é possível separar a ética da moral.  A ética é o resultado de múltiplas ações morais que se tornaram coletivas.

Para falar de política, então, temos que falar tanto da ética tanto quanto da moral?
Sim. Por exemplo, na sociedade indiana pré-independência, a ética era a da obediência aos ingleses, dos aristocratas que dividiam (e dividem até hoje) a sociedade em castas. Gandhi assumiu atitudes de desobediência e não-violência a partir de sua consciência moral. Gosto muito do exemplo do sal. Era proibido de ser tocado e Gandhi pegou um punhado. Seu gesto “eu não aceito essa ordem legal” foi repetido muitas vezes. Até que se chegou à independência.

Como a noção de ética muda ao longo do tempo e das sociedades? Por exemplo, na Índia independente criou-se outros códigos de conduta social.
Johann Gottlieb Fichte, grande autor moral do século XIX e da modernidade comparava o nascimento da reflexão ao choque. Quando você está indo em uma direção e encontra o obstáculo, sente a necessidade de mudar o caminho.  Com a ética é assim. Você está mergulhado em preconceito e tem um choque que obriga a repensar e reordenar todos os seus valores.
Até o século XIX, havia um racismo tremendo na cultura. Dizia-se que matemática era apenas para homens e brancos. Até que as pessoas se deram conta de que havia mulheres e negros ótimos em cálculos. As pessoas com caráter minimamente correto passaram a questionar ao tomar esse “choque”. Outro choque é ser assaltado na rua. Você vive bem até que os choques sociais te fazem pensar nas condições de vida na sua sociedade.
Não há mudança ética ou mudança moral sem a crise. O conceito de crise não é totalmente negativo. Ele é importante para se pensar nas questões da ética e da moral porque são em situações limites da vida social em que propostas de renovação e de mudanças de comportamento aparecem.
Na medicina grega hipocrática, a ideia de crise é o momento em que o corpo está brigando com a morte. Pode reagir e sobreviver ou não. O médico tem que saber muito bem e perceber os sinais positivos ou negativos da crise. Assim também deveria fazer os políticos, os professores, os jornalistas que têm o conhecimento mais aguçado que o cidadão comum para perceber os sinais da crise e saber se são positivos ou negativos.

Quais foram os momentos de crise da ética em nossa sociedade ocidental?
Temos pelo menos dois importantes. Um deles é a Renascimento (séculos XIV a XVII) e a Reforma Protestante: A partir de Lutero, rompeu-se com a ideia de que o homem tinha quer ser cristão e católico. A ruptura obrigou a sociedade – e inclusive a própria Igreja Católica – a repensar. Tanto que em seguida, a Igreja organiza a Contra-Reforma. O Renascimento é o momento do surgimento do estado moderno e da secularização também cultura, da moral e da ética.
No século XVII, debatia-se seriamente a possibilidade de uma sociedade puramente ateia ter moral ou não. Até que se entendeu que para ser ético e correto não era preciso ser necessariamente religioso.
O segundo momento é o século XVIII com a Revolução Francesa e  a independência dos Estados Unidos. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão traz justamente o direito do homem ter uma religião, mas sem o direito de impô-la aos outros.
Foi nessa época que se consagrou um princípio fundamental na ética até: o da responsabilidade dos governantes diante dos governados, também chamado de accountability.
Na Revolução Puritana inglesa do século XVII se estabeleceu a accountability. Os reis passaram a ter que prestar contas. Se não, poderiam ser destituídos imediatamente. Esses princípios passaram para os Estados Unidos e isso está estabelecido lá até hoje.
Havia na democracia de Atenas a dokimasia: quando uma pessoa assumia um cargo público civil ou militar, era submetida a um exame e só assumia o cargo se provasse competência técnica e de valores humanos, éticos. No final da gestão era feito outro exame e uma prestação de contas. No caso de um mandato ruim, havia multas e até perda da cidadania e exílio.  Foi baseada nessa prática que se criou na Inglaterra do Século XVII a accountability.

Falta ao Brasil então a accountability?
Com certeza. A accountability estabeleceu o princípio do estado democrático moderno, mas é algo que nós brasileiros não conhecemos. Nunca nem fizemos uma revolução democrática. A inconfidência mineira foi uma tentativa. Os homens do movimento, liam os autores da Inglaterra, dos EUA.  O estado de Portugal era absolutista, totalmente contrário à prestação de contas. Acabaram com o movimento da inconfidência. Durante a fase do Império se continuou a perseguir os liberais e as pessoas com ideias que queriam estabelecer a república e um governo democrático.
O século XIX foi o da imposição das armas pelo império de uma norma de estado contra a democracia e o liberalismo. Então, nossa tradição é a de não-responsabilização.
Nossa ética ainda hoje é a do absolutismo: quem está dentro do aparelho do estado é superior, quem cidadão, não é nada. Prestar contas hoje é impossível nos três poderes do Brasil. Em todas as repartições públicas há um cartaz dizendo que insulto ao funcionário público é crime! E não existe nada falando que insultar o cidadão é crime. Se alguém te destrata na receita federal, você não pode fazer nada!

A lei da Transparência é um inicio de uma fiscalização dos brasileiros sobre o funcionalismo público?
Exatamente. Estamos caminhando a passos de tartaruga para mudar essa configuração. Temos a Lei da Improbidade Administrativa que segundo pesquisas do Ministério Público já consegue culpabilizar pelo menos 40% dos impobros processados. É pouco, mas perto da quase impunidade nenhuma anterior, é muito. E temos a Lei da Ficha Limpa. São leis que estão começando a definir o novo padrão de comportamento dos trabalhadores do estado e do público. Depois de se vivermos 500 anos sob a ética da servidão, é muito difícil perceber uma outra situação. Temos tentativas de mudanças que estão sendo bem sucedidas.

Voltando aos momentos de crise ética, ao fim da 2ª Guerra Mundial,  a Organização das Nações Unidas (ONU) – então, recém-criada – aprovou  a Declaração Universal dos Direitos Humano. Isso teria sido o resultado de um momento de crise ética?
Isso foi um marco importante. A ONU ainda é um instrumento deficiente na resolução de guerras, mas é um caminho. Em passos pequenos estamos conseguindo mudar a ética planetária. Pouco a pouco se encontram novos caminhos.
Em Leis, Platão diz que não existe Estado (pólis) se nele as dores e alegrias dos indivíduos não forem  as dores e alegrias do coletivo e vice-versa. E não é automático que isso aconteça.
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Fonte: http://mercadoetico.terra.com.br/28/03/2013

quarta-feira, 27 de março de 2013

Pátria e morte

 

Perto do final da Segunda Guerra, quando a invasão do Japão por tropas dos Estados Unidos parecia iminente, o vice-almirante Onishi Takijiro criou as Unidades Especiais de Ataque por Choque. Elas incluíam aviões comandados por pilotos kamikazes, os tokkōtai, que deveriam produzir o milagre da defesa da nação, cercada de porta-aviões inimigos tidos como indestrutíveis. Para tanto, os pilotos suicidas deveriam conduzir um avião carregado de explosivos a um choque direto e devastador contra um navio inimigo.
Quando a operação tokkōtai foi criada, em outubro de 1944, nem um único oficial treinado nas academias militares japonesas se apresentou como piloto voluntário – todos sabiam que se tratava de missões suicidas.
Os “voluntários” foram perto de 3 mil “meninos-soldados”, nome dado às levas de adolescentes recém-recrutados como parte do esforço de guerra. Outros mil eram “soldados-estudantes”, universitários formados às pressas pelo governo para entrar nas fileiras militares.
Os soldados-estudantes formavam um grupo excepcional. Eles eram cosmopolitas e cultos, dados a reflexões profundas, fruto do exigente currículo escolar japonês. Era obrigatório o estudo de duas línguas estrangeiras, além do latim. Quem tivesse optado pelo alemão, por exemplo, recebia como dever de casa, já na primeira aula, ler Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe. E no original, antes mesmo de o aluno ter sido apresentado ao alfabeto romano. Também era avaliada a leitura da Crítica da Razão Pura, de Immanuel Kant. O fato de o aluno não entender quase nada, e ser obrigado a reler o texto à exaustão, destinava-se a torná-lo consciente de sua ignorância e do quanto deveria estudar.
Outra característica fundamental: enquanto os soldados alemães eram treinados para matar, os japoneses eram adestrados para morrer. Rendição, fuga, rebeldia, qualquer ato para salvar a vida diante da derrota incontornável eram punidos com a morte. Todo soldado que desobedecesse ao regulamento militar, ou a alguma ordem de superior, era fuzilado na hora. E uma ofensa dessa natureza podia levar à punição dos parentes imediatos do soldado.
Como primeira lição, o soldado-estudante aprendia a usar o rifle para se matar antes de ser capturado. Era-lhe ensinado a acionar o gatilho usando o dedão do pé – tendo por alvo um ponto preciso abaixo do queixo, para a morte ser instantânea.
Ser piloto tokkōtai significava morte certa, e por isso a oficialidade de alta patente imprimiu-lhe a falsa característica de voluntariado. Na maioria das vezes, todos os membros de uma unidade eram convocados a se apresentar num salão comum. Convidavam-se os recrutas a dar um passo à frente caso quisessem aderir à honra de dar a vida pela pátria. Ou o inverso: aqueles que não quisessem se tornar pilotos suicidas deveriam dar um passo à frente. Poucos resistiam à pressão.
O retrato idealizado desses jovens, promovido pelo governo militar da época, corresponde ainda hoje ao estereótipo do kamikaze – eles são vistos como a encarnação moderna dos bravos guerreiros, honrados por poderem se sacrificar pelo imperador.
Kamikaze Diaries: Reflections of Japanese Student Soldiers, livro da acadêmica americana Emiko Ohnuki-Tierney,corrige essa distorção. A seguir, trechos desses diários.
 
SASAKI HACHIRŌ
O pai de Sasaki Hachirōfez o possível para dissuadir o filho de ser voluntário para a missão de piloto kamikaze. Não tendo conseguido, jamais voltou a lhe dirigir a palavra. Mesmo quando Hachirō, com 22 anos de idade, veio se despedir, o pai saiu de casa e só retornou na manhã seguinte. Terminada a guerra, a família recebeu uma notificação da morte de Hachirō, junto com uma medalha e uma pequena soma de dinheiro. Sem dizer nenhuma palavra, o pai pegou o dinheiro, foi até uma loja de bebidas, comprou saquê e o bebeu sozinho.
 
10 de fevereiro de 1940_Finalmente invadimos Cingapura. O número de vítimas civis deve ter sido grande. Crueldade da guerra. Cega a esse tipo de questões, a história continua sua marcha diária.
 
13 de abril_Soa a sentimentalismo, mas, se você precisa morrer, que seja de forma bela.
 
12 de outubro_O idealismo não é nem uma ideologia fixa nem uma autoridade absoluta.
 
1º de novembro_Para quem vive no século XX, é preciso saber encontrar a síntese entre o mais passivo e o mais agressivo polo de racionalismo e ativismo... O racionalismo é por demais objetivo e o ativismo, subjetivo em demasia. Como sustenta Heidegger, estamos na história. Ela não nos precede quando nela adentramos. A partir do momento em que nascemos, estamos na história. Somos o sujeito que vive no objeto. (...)
(...)Prefiro pensar que “inevitabilidade” é mais importante do que “necessidade”. Devemos sempre nos empenhar em stirb und werde! [“morra e seja”, ou crescimento por meio da morte]. Estou sinceramente feliz por estar vivo... O que mais importa é a liberdade da vontade, liberdade de espírito em meio ao caos do presente... Obediência cega sem vontade livre não constitui uma resposta ao nosso caos.
 
16 de abril de 1941_Quantos realmente morrem de “morte trágica” nessa guerra? Estou convencido de haver várias mortes cômicas disfarçadas de mortes trágicas. À primeira vista, ambas são iguais. Mas mortes cômicas camufladas de trágicas não deixam transparecer a alegria de uma vida. Estão cobertas de agonia sem valor ou sentido. Ou seja, são duplamente negativas, o que as torna cômicas.
 
14 de setembro_Foi anunciado que todos os japoneses devem trabalhar em indústrias vitais para o esforço de guerra. Isso significa que há pessoas saboreando néctar enquanto ignoram o esforço árduo e a humanidade dos japoneses. O que é patriotismo? Como tolerar a matança de milhões de pessoas e a privação de liberdades básicas de bilhões de outras por causa de noções abstratas como patriotismo e pátria?
 
9 de dezembro_Não consigo me sentir eufórico com as vitórias do Japão na guerra. Sinto ansiedade. Também me preocupo com os rumos do capitalismo depois do fim da guerra.
 
15 de dezembro_Dado que vivobem, sob a benevolência da nação deste imperador, não me recusaria a me alistar, se chamado. Não sou fraco a ponto de me sentir esmagado pela guerra. Mas faço questão de declarar minha oposição a todas as guerras.
 
26 de janeiro de 1942_Sei que posso morrer a qualquer momento, e por isso deixo tudo o que é meu arrumado; vivo uma vida organizada e tiro fotografias para a posteridade.
 
1º de março_Hoje presto exame de admissão para economia na Universidade de Tóquio. Usei meu uniforme de sempre, mas minhas roupas íntimas estavam limpas e novas. Acho que escrevi um ensaio singular sobre a questão da nossa história e da história do Ocidente. Também acho que fui bastante audacioso na resposta sobre a crítica literária contemporânea. Portanto, não sei como serei avaliado. Em retrospecto, penso que poderia ter me saído melhor, mas se for reprovado isso significa que eles não têm a mais vaga ideia do meu potencial. Uma das perguntas foi tirada da obra de Tanabe Hajime, Rekishiteki-geniitsu [Realidade Histórica, sem edição em português]. Fico deprimido ao pensar o quanto esse livro me impressionou no passado. Ele é dogmático e cheio de fios soltos. Não é nada além de raciocínio vazio.
 
4 de março_Achei uma aranha minúscula dentro do meu livro. Num impulso de malvadeza, aproximei meu cigarro da aranha, que se pôs a correr freneticamente. Coloquei o cigarro aceso à sua frente, ela mudou de rota. Repeti o ato várias vezes até a aranha se imobilizar. Deixei-a sossegada por um tempo. Num novo impulso, aproximei o cigarro aceso por cima, e ela voltou a correr. Continuamos assim por uns dois minutos. Ela então cansou, encolheu as pernas e tornou-se imóvel mesmo sem ter sido tocada pela brasa do cigarro.
É possível que, para essa aranha, o tamanho do livro seja o do Japão, e cinco minutos sejam cinco ou dez anos. Durante esse período, e nesse espaço, onde quer que ela fosse, havia fogo. E quando ela parou, o fogo veio de cima... Se isso acontecer a um ser humano, ele enlouquece. A aranha não entendia de onde vinha aquela chama. Seres humanos também perdem.
Desejo me tornar um homem capaz, mesmo que a grande custo. Capaz de identificar objetivamente a causa do problema, e transmitir esse conhecimento à geração seguinte. Feito isso, posso morrer. Através da alegoria da aranha traço um retrato doloroso do povo japonês nestes tempos de guerra – sem entender o que ocorre, ele corre sem rumo, em busca de uma saída para a situação impossível causada pela guerra.
 
Abril_Os militares: bando de loucos!
 
Junho_Todos os livros escritos pelos marxistas [japoneses] são demagógicos, combativos ou parecem ensaios de estudantes secundários que descobriram a filosofia. Perdi a ingenuidade de me deixar levar nessa demagogia. Lamento por Marx ser divulgado através desses sujeitos.
 
Abril de 1943_[A notícia da morte do almirante Yamamoto Isoroku angustia Sasaki. Yamamoto opusera-se inicialmente à entrada do Japão na guerra, argumentando que o país não aguentaria seis meses, mas acabou designado para comandar o ataque a Pearl Harbor. Seu bombardeiro Mitsubishi “Betty” foi derrubado por caças americanos numa emboscada, causando profunda comoção à nação. Sasaki pensa em se apresentar como piloto suicida voluntário e morrer.] Sou um mero ser humano. Por vezes, meu peito explode de excitação quando imagino o dia em que vou decolar rumo ao céu. Treinei corpo e alma o quanto pude, e anseio pela chegada do dia de usar em combate todo o meu potencial. Minha vida e morte pertencem à missão. Mas há vezes em que invejo os estudantes de ciências que continuam em casa, isentos do serviço militar. Invejo os que se tornarão bibliotecários, engenheiros ou médicos, e escaparam do recrutamento. Sou atraído pela minha segunda alma terrena. Tenho duas almas escondidas dentro de mim, e cada uma desponta com os estímulos externos da minha mente. Uma de minhas almas olha para o céu, enquanto a outra sente atração pela terra. Gostaria de me alistar na Marinha o quanto antes, para poder me dedicar à minha tarefa. Tomara que passem logo os dias em que me sinto atormentado por pensamentos tolos.
 
11 de junho_[O desembarque das tropas americanas na ilha Attu desencadeia um longo solilóquio de Sasaki  Hachirōsobre marxismo e capitalismo.] Vejo sinais de um novo ethos para uma nova era. Se o poder do velho capitalismo é algo do qual não conseguimos nos libertar a menos que ele seja esmagado pela guerra, estaremos transformando um desastre num fato positivo. Estamos em busca de uma fênix saída das cinzas. Mesmo que o Japão sofra uma ou duas derrotas, ele não será destruído se conseguir sobreviver. Não sou pessimista, mas não podemos negar a realidade. Temos de olhar para frente, superar os tempos difíceis. Nesta encruzilhada crítica da história, não podemos deixar que velhos capitalistas e militares irracionais se agarrem ao velho regime. Nós, os jovens, precisamos arcar com a responsabilidade de fazer nascer um novo mundo.
 
Novembro_Não sei se esperam que eu vença esta guerra, mas vou lutar o quanto puder... Rezo para que chegue logo o dia em que possamos saudar um mundo no qual não devamos matar inimigos que não conseguimos odiar. Para esse fim, estou disposto a ter meu corpo destroçado inúmeras vezes.
 
Dezembro de 1944_Finalmente vou para a Marinha. Treinei meu corpo praticando natação, ginástica e tiro ao alvo. Sinto-me confiante na minha força. Devemos agora tornar-nos escudos para garantir vida eterna à nossa nação e prevenir o avanço do inimigo. Meus estudos universitários são importantes, mas a disciplina que escolhi (economia), que é pragmática e socialmente relevante, será mais bem exercida se eu tiver um treinamento militar. E, mesmo que eu venha a tombar, a sociedade não depende de um só indivíduo.
 
20 de fevereiro de 1945_[Todos os soldados-estudantes foram reunidos num saguão da Universidade Imperial de Tóquio e “convidados” a se inscrever na lista de pilotos suicidas “voluntários”.]
 
14 de abril_[Sasaki Hachirōmorre aos 22 anos e 9 meses de idade.]
 
 
HAYASHI TADAO
O diário manuscrito de Hayashi Tadao  foi compilado e editado por seu irmão mais velho, Katsuya, vários anos após o fim da guerra. As forças de ocupação americanas haviam imposto uma rígida censura ao Japão. Diários como o de Tadao eram confiscados. O irmão de Hayashi também quis dar tempo para que os próprios japoneses começassem a compreender o envolvimento do país na Segunda Guerra Mundial. E o porquê de se ter enviado tantos jovens universitários para a morte.
Os irmãos Hayashi e Katsuda compartilhavam o apego ao comunismo, à música clássica ocidental, à filosofia e a discussões sobre vida e morte. Pouco depois da guerra, a família recebeu uma caixa de madeira com a inscrição “A Heroica Alma do Saudoso Hayashi Tadao”. No lugar das cinzas, em uma pequena folha de papel branco havia as palavras “restos mortais” (ikotsu) escritas em caligrafia nobre.
 
6 de abril de 1940_À noite leio Debaixo das Rodas, de Hermann Hesse. A jovem alma [o personagem Hans Giebenrath] procura crescer contra a opressão do sistema educacional do mosteiro. Ele abandona o mosteiro e tenta seguir seu próprio caminho. Mas Hans adoece. A beleza e a efemeridade do seu espírito e alma levam ao triste final de sua vida. A corrente subterrânea da impermanência. Sopro de crescimento, bela mas frágil alma da juventude, e morte.
 
15 de abril_Dominar o idioma inglês e identificar um princípio que me guiará intelectualmente – o liberalismo – são duas tarefas importantes da minha busca. Me pergunto em vão: “Quanto tempo vou viver?”
 
23 de maio_Sigo uma agenda diária que me impus: ler cinco páginas em inglês e 100 em japonês... Durante meus anos de colegial me proponho a ler 300 livros em japonês, quinze em inglês [além dos do currículo escolar] e melhorar meu condicionamento físico com trinta minutos de exercícios diários. Não ler enquanto descanso.
 
19 de abril de 1941_A indulgência com emoções e o erótico tem sua razão de ser. Mesmo que não passe de uma união entre dois corpos, o ser humano está destinado a sentir que não pode viver sem a companhia de outro ser humano. É claro que o erotismo não brota apenas da solidão. Algo mais leva ao desejo de companhia. Mas talvez essa interpretação sirva apenas para estetizar o erotismo...
 
22 de junho_[A propósito da declaração de guerra da Alemanha à União Soviética.]O que vai acontecer com o Japão? A morte é imoral e viver é absolutamente moral.
 
31 de agosto_Japão, por que eu não te amo e não te respeito?
 
12 de outubro_A nação é uma entidade com enorme poder de controle.Não posso mais elogiar minha pátria. A guerra não se destina a proteger o país, mas é o resultado inevitável da forma como o Japão se desenvolveu como nação. Sinto que devo aceitar o destino da minha geração, lutar na guerra e morrer. Chamo isso de “destino”, uma vez que somos mandados ao campo de batalha para morrer sem podermos expressar nossas opiniões, criticar e dar argumentos a favor ou contra. Morrer na guerra, morrer sob a demanda da nação – não tenho a menor intenção de elogiar esse estado de coisas. Trata-se de uma grande tragédia.
 
20 de janeiro de 1942_Uma frase de Jean-Christophe [obra que valeu o Nobel de Literatura ao romancista francês Romain Rolland] me tocou fundo: “A vida consiste em uma batalha contínua e sem trégua. Se você quer se tornar um ser humano honrado, precisa lutar contra inimigos invisíveis, desastres naturais, desejos avassaladores, pensamentos sombrios; tudo o que engana a pessoa, a diminui, a destrói.”
 
18 de junho_Assisti a uma palestra do professor Tanabe Hajime [venerado membro da Escola de Filosofia de Kyoto]. Sua voz era tão miúda que ficou quase inaudível. Em suma, ele disse que “a filosofia é um treinamento para a morte. A realidade demanda a morte, isto é, o sacrifício da própria vida. Não se morre de acordo com a própria vontade”.
 
30 de setembro_Preciso ser sincero. O desejo sexual é doloroso. Olho para mim, tomado pela vontade de união física. Em seguida combato o impulso como se fosse sujo e feio, resultado da minha raiva por não satisfazer o desejo. Por outro lado, sonho em aspirar o cheiro do suor [de uma amante] que excita, o cheiro do corpo do sexo oposto, o toque em um corpo quente, a euforia do enlace de duas pessoas apaixonadas se descobrindo, sem o sentimento da vergonha, a dança selvagem do ato, o adormecer abraçado e a doce sensação de despertar a seu lado – são todas imagens que me atormentam. Luto diariamente com esta dor. Preciso assumir o controle sobre mim!
 
21 de maio de 1943_Outra palestra do professor T. Ele explicou que a Escola Estoica considera a morte um fenômeno natural, não controlável por nossa vontade, enquanto o existencialismo de Heidegger vê a morte como uma possibilidade realista – a possibilidade de renascer que deriva da nossa habilidade de encarar a morte. De acordo com o professor, nossa única salvação é sabermos que devemos morrer, que devemos viver nossas vidas preparados para mergulhar na morte a qualquer momento. A morte não é Sein [ser, em alemão], mas Sollen [dever ser]. Ele prosseguiu dizendo que a humanidade e Deus não entram em contato direto. São as nações que medeiam entre os dois. Devemos fazer o possível para manter os três conectados.
 
16 de junho_Ao ler Em Torno de uma Vida: Memórias de um Revolucionário [de Piotr Kropotkin, o anarquista], fiquei tocado pela força espiritual dos russos, em especial pelas mulheres da Rússia pré-revolucionária. Apesar de perseguidas pelo regime, elas procuraram obter conhecimento; algumas se aventuraram no exterior e acabaram por encontrar uma faculdade de medicina para mulheres. Nelas encontro o verdadeiro caráter dos russos. Nossa tendência, quando pensamos no povo russo, é evocar a imagem do miserável mundo descrito por Dostoiévski em Recordações da Casa dos Mortos, mas a intensa busca intelectual da verdade também existiu.
 
1º de dezembro_[Entre 200 mil e 300 mil estudantes foram convocados para a guerra. O número exato permanece incerto.]
 
9 de dezembro_[Entre os 63 mil jovens enviados para a base naval de Takeyama, em Yokosuka, estava Hayashi Tadao.]
 
19 de dezembro_Os dias passam rápido. Ainda assim, cada dia parece longo... Não se pode lutar sozinho em guerras modernas. Cada um se torna uma peça da roda. Como estou convencido de que esta guerra é uma Totalkrieg [guerra total], devo concordar com cada etapa necessária.
 
25 de dezembro_Estou decidido a manter meu diário. Mas o Geist [Espírito] precisa permanecer livre. Dado que procuramos manter a liberdade de espírito, nos sentimos controlados. Por sermos responsáveis pela proteção do país, devemos ter a firme convicção de pro patria mori, trabalhar nossa força física e dominar nossas qualificações técnicas.
 
1º de janeiro de 1944_Talvez o que nos espera seja uma funda desilusão e, para nossa sociedade, uma anarquia insidiosa. Sonho em me alongar sobre as ondas do mar num dia ensolarado de primavera para me intoxicar com pensamentos soltos enquanto meu corpo se solta à deriva na água... De repente, me vem à mente uma cena de Casa dos Mortos – no entardecer de um dia de verão de céu esbranquiçado, os prisioneiros são empurrados para dentro das celas.
Vivo na solidão.
 
3 de janeiro_Não fujo do sacrifício. Mas martírio e sacrifício devem ser feitos no auge da realização pessoal. Sacrifício ao término do autoaniquilamento, da dissolução do seu ser, não tem nenhum significado.
 
22 de janeiro_Os militares exterminam a paixão e transformam o ser humano numa peça que gira uma roda mecanicamente.
 
23 de janeiro_Estamos todos pessimistas quanto à possibilidade de voltar para casa. Se eu não conseguir sair da Marinha, vou enlouquecer. No momento eu só quero ler livros e nesse estado de espírito não vou conseguir lutar na guerra... Não tenho paixão. Sinto perda e indiferença. Não me importa o que venha a acontecer. O sentimento mais penoso e insuportável deriva dessa vida de forçada indiferença. A parte dura não é morrer, é viver.
 
28 de janeiro_[Hayashi Tadao é selecionado para piloto reserva e transferido para a base naval de Tsuchiura, notória pelo tratamento brutal conferido aos soldados.]
 
8 de maio_O individualismo não é um mero “ismo”, mas um princípio inato do ser humano. Realmente odeio os militares. A única utilidade que reconheço neles é o seu papel de protetor do nosso Volk [povo, em alemão].
 
19 de maio_Sinto-me cada vez mais atraído pela solidão, preces, dívida e responsabilidade social, mas nenhum sentimento de amor, que me parece remoto demais no momento.
 
2 de junho_Acabo de ouvir a Nona de Beethoven. Me tocou profundamente. Intensificou meu desejo de ler livros.
 
8 de junho_Prevejo a queda de Paris para dentro de um mês e meio. Agora começa o contra-ataque inimigo, com sua acachapante superioridade bélica. A catastrófica etapa descrita em Nada de Novo no Front [romance pacifista de Erich Maria Remarque sobre a Primeira Guerra Mundial] se aproxima.
 
16 de junho_Ataques aéreos contra Saipan, ilhas de Tinian e Bonin. A situação é muito tensa, mas para mim tanto faz o Japão ser destruído. É por demais tedioso ficar esperando.
 
20 de junho_Minha alma treme diante da tapeçaria literária de Tonio Kröger, de Thomas Mann, com sua pitada de solidão, sensibilidade aguda e uma sublimidade quase ameaçadora.
 
8 de julho_É pouco provável que eu consiga obter O Estado e a Revolução, de Lênin. Meu plano, então, é memorizar A Última, de Wilhelm Schmidtbonn, e O Apóstolo, de Rilke.
 
14 de Julho_Hoje encerro meu diário, fruto da minha empobrecida vida espiritual. Eu, confusão e anarquia, estou reduzido a isso. O que me atrai são questões sobre a natureza da sociedade moderna. Neste diário eu expus minhas fraquezas. Este misérable humano na sua totalidade está aqui retratado. Escrever o diário foi uma forma de encontrar algum sentido para mim.
O que desejaria, para mim, é andar pelas ruas de Moscou com uma boina na cabeça, estudar economia e política internacional numa Bibliothek alemã ou me envolver numa análise teórica dos rumos a serem tomados pelo Japão. Se eu viver, é o que farei. Se eu morrer, terá sido um mero sonho. Gostaria de pensar neste diário como o primeiro capítulo do registro de um ser humano que tinha um grande sonho, mas que não encontrou uma solução. Tentei como pude realizar este sonho. Fim.
 
Final de maio de 1945_[Antes de ser transferido para a base aeronaval de Miho, Hayashi Tadao implorou ao irmão que lhe emprestasse O Estado e a Revolução, de Lênin, à época proibido no Japão. O irmão conseguiu fazer-lhe chegar a obra e Hayashi Tadao lhe contou ter lido, página por página, no banheiro. A cada vez, rasgava a nova página em pedacinhos e a fazia sumir na privada. Houve vezes em que engoliu os pedacinhos.]
 
30 de maio_[Última carta à mãe.] Mãe. Quantas vezes você falou que viveríamos em Kyoto depois da minha formatura da faculdade... Kyoto é realmente uma cidade pacífica e plebeia. Você e eu – não há lugar melhor para vivermos juntos e continuarmos a nos aprimorar. Mãe, já não há esperança de vivermos juntos agora que fomos arrastados pelo redemoinho do tumulto mundial. Como você viverá? De qual força moral poderá você depender para a continuação da vida? Minha pobre mãe. 
 
27 de julho_Entardecer, o momento mais belo... Sem avisar, milhões de imagens aparecem e desaparecem. Amado povo. Como é doloroso morrer no céu.
 
28 de julho_[Hayashi Tadao morreu aos 24 anos, já depois da rendição aos americanos. Seu avião explodiu numa noite enluarada.]
 
            
KASUkA TAKEO
Apesar da publicação de inúmeros testamentos, fotos e filmes mostrando jovens pilotos sorridentes fazendo o último aceno antes de decolar para a derradeira missão, um raro relato de como transcorria a noite de véspera mostra uma história inteiramente diversa. Kasuka Takeo tinha 86 anos em junho de 1995 quando narrou o que viu, numa noite como aquela. Durante a guerra, Kasuka Takeo tinha por tarefa cuidar das refeições, da lavanderia, da faxina e de outros trabalhos manuais para os pilotos tokkōtai da base aeronaval de Tsuchiura. Eis o trecho da carta enviada a um amigo:
No salão onde ocorriam as festas de despedida, os jovens oficiais estudantes bebiam saquê frio. Alguns engoliam o copo de um só trago. Outros sorviam grandes quantidades em goles consecutivos. O local se transformava em caos. Alguns quebravam lâmpadas com suas espadas. Outros arremessavam cadeiras contras as janelas e rasgavam as toalhas de mesa. Um misto de hinos militares com xingamentos enchia o salão. Enquanto alguns vociferavam em fúria, outros soluçavam. Era a última noite de suas vidas. Embora, para todos os efeitos, estivessem prontos a sacrificar sua preciosa juventude ao alvorecer, em nome do imperador e do Japão, eles estavam dilacerados – uns repousavam a cabeça na mesa, outros escreviam testamentos ou juntavam as palmas das mãos em meditação, ou dançavam feito alucinados. Na manhã seguinte, todos decolaram portando a faixa com o sol nascente na fronte.
 
 
NAKAO TAKENORI
Nascido em Fukuoka, numa família de classe média-alta, Nakao Takenori estudava direito na Universidade de Tóquio quando foi convocado para a guerra, em dezembro de 1943, aos 19 anos de idade.
Em 1997, seu irmão caçula publicou Registro de uma Busca Espiritual: Diário Manuscrito Deixado por Nakao Takenori, um Estudante que Morreu na Guerra. Com mais de 700 páginas, nele ficam evidentes a procura de um sentido para a vida e o desejo de ser “puro”, livre de qualquer materialismo ou egoísmo. A busca da mulher ideal também permeia os escritos de Nakao Takenori. Seu conhecimento de textos filosóficos em grego e latim, além de literatura alemã e francesa, era profundo.
 
Agosto de 1939_Embora Hitler e Napoleão tenham guerreado para expandir seus territórios nacionais, do ponto de vista histórico eles são apenas a ascensão e queda de um povo. Seres humanos nascem para a morte. Somos apenas um ciclo histórico. A história se repete. Qual o verdadeiro sentido do universo?
 
Dezembro_Ameaçar a vida de um inocente jamais deveria ser permitido. Do ponto de vista dos militares, porém, isso não importa, pois a única coisa que conta para eles é a honra. Eles não questionam o que é ou não verdade, apenas enchem o ar de mentiras.
Devo ingressar no mundo do caos em que interesses partidários obstruem a justiça? Não gostaria de fazer parte do mundo que aprimora a justiça somente para os burocratas e aumenta o poder dos militares. Prefiro me manter à margem e, como Zola [Émile Zola, autor de J’Accuse, panfleto de 1898 em defesa do oficial francês Alfred Dreyfus, de raiz judaica, acusado injustamente de traição], orientar a nação em direção à justiça e à verdade.
 
Abril de 1940_Sócrates foi forte. Sempre se opôs aos hipócritas e manteve seu sentido de justiça. Sinto não ser tão forte como ele.
 
Maio_Vejo tudo cinza. Desesperança e melancolia sem perspectiva de melhora. Não estou certo de conseguir suportar a exaustão física e mental. Devo simplesmente morrer, sem haver qualquer sentido à minha vida? Sinto como se tudo fosse desmoronar repentinamente.
 
Abril de 1941_Muitos estudantes aceitam o seu destino, aceitam a necessidade de lutar mesmo diante da matança cruel. Sacrificam as próprias vidas pela pátria e morrem abençoando suas mães e irmãos. É espantoso. Talvez seja esse o espírito que hoje torna a Alemanha vitoriosa. [Nakao  Takenori acabara de ler uma coleção de cartas escritas por soldados-estudantes alemães da Primeira Guerra Mundial.]
 
Abril de 1943_Estamos lutando contra a Inglaterra, esse grande império em declínio, e contra uma América que está no ápice de sua cultura material. Embora eu ainda não esteja no campo de batalha físico, já me considero dentro. Eu, que procuro e amo o absoluto, devo me sacrificar pela pátria... Será o “absoluto” encontrável neste sacrifício?
Não consigo não me debater com esta contradição... Eu, que cheguei a conhecer a profundidade da vida e a viver essa vida, devo me sacrificar pelo país uma vez que é esse meu destino? Persigo a verdade, a duras penas.
 
28 de abril de 1945_[Última carta endereçada aos pais.] Na festa de despedida o pessoal me deu forças. Também me esforcei para me encorajar. Sinto-me uma pessoa feliz. Posso ir ao encontro da morte na certeza de ter recebido tratamento sincero de quem eu tratei bem... Meu copiloto é Uno Shigero, um garoto bacana de 19 anos... Ele me considera seu irmão mais velho e eu o vejo como meu irmão caçula. Unidos por um mesmo pulsar de coração, vamos mergulhar num navio inimigo. Uma foto minha, que tirei recentemente, ficará pronta em pouco tempo. Ela será enviada a vocês.
 
29 de abril_[Nakao e Uno decolam para a missão suicida, mas são forçados a retornar à base por mau funcionamento do avião.]
 
5 de maio_[Os pais de Nakao vão até a base naval de Takuma para ver o filho, mas são informados de que ele já havia sido transferido para outra base; não foram informados de que ele tinha morrido na véspera, ao mergulhar na batalha de Okinawa.]
 
 
HAYASHI ICHIZŌ
Nascido numa família cristã de cultura refinada, Hayashi Ichizōse formou pela Universidade Imperial de Kyoto e foi alistado aos 21 anos. Dois anos depois, foi selecionado como piloto tokkōtai. Em menos de dois meses partiu para sua missão final. Todos os trechos de seu diário datam de 1945, quando já estava aquartelado na base naval de Wŏnsan, na Coreia ocupada.
 
9 de janeiro de 1945_Ganhei um caderno novo e vou começar a escrever meu diário... Embora nossa missão seja lutar, é frustrante ficar esperando... Mais um dia sem poder decolar... Provavelmente não poderei ir à frente de combate antes do florescer das cerejeiras, nem quando elas já tiverem murchado.
 
22 de fevereiro_[Data em que foi designado para uma unidade tokkōtai.] Devemos seguir a expressão “Sob as ordens de Sua Majestade”. Recebemos a locação da nossa morte. Devemos simplesmente mergulhar com o avião. Seres humanos são dotados da capacidade de perdoar.
 
23 de fevereiro_Tenho tido tanto medo da morte, mas ela já foi decidida por nós...Quando penso na minha mãe, não consigo não chorar. Sei que tentarão consolá-la, mas sei que não será fácil aliviar sua dor. Choro muito ao pensar nela...
Tenho a sorte de crer em Deus, e minha mãe também. Embora eu vá morrer, sonho com o nosso reencontro... Tenho a forte esperança de que nosso país irá superar esta crise e haverá de prosperar. Não suportaria a ideia de a nossa pátria ser esmagada pelo inimigo sujo.
Para ser sincero, não posso afirmar que o desejo de morrer pelo imperador seja genuíno, que ele venha do fundo do coração. Mas foi decidido assim.
Não terei medo no momento da morte. Tenho medo do quanto o medo da morte perturba a minha vida.
 
4 de março_O motivo pelo qual ando pensando em suicídio é porque a morte em combate significa o meu completo aniquilamento, impedindo que eu contribua para a sociedade, que eu empreenda algo. É fácil falar de morte no abstrato, como nas discussões dos filósofos da Antiguidade. É a morte real que temo e não sei se poderei superar este medo.
 
19 de março_Gostaria de fazer alguma diferença no mundo. Não nego que parte desse desejo deriva da minha vontade de ter a existência reconhecida. Mas sobretudo ele deriva do vazio que sinto e da minha ira com os chamados líderes, que são incapazes de reconhecer problemas que até eu consigo identificar.
Os militares que ocupam altos postos estão cometendo um pecado que não pode ser desculpado: estão matando crianças e civis inocentes na China.
 Não tenho mais tempo para fugir... Desta vez não vou tentar escapar.
 
21 de março_Com os preparativos para a decolagem final sinto um peso dentro de mim. Acho que não conseguirei olhar a morte na cara.
Desespero, desespero é pecado.
 
Abril_[A missão final de Hayashi Ichizōfoi abortada devido ao mau funcionamento do seu avião. Isso permitiu que ainda escrevesse mais três “cartas de despedida” à mãe.] Hoje metade de nossa unidade mergulhou sobre navios inimigos ao largo de Okinawa. Não temos luz, por isso escrevo perto de uma fogueira.
Mando lembranças a todos. Não me resta tempo para escrever-lhes. Vamos afundar navios inimigos. O uniforme de um piloto tokkōtai para sua última missão inclui uma bandana com o sol nascente e uma echarpe de seda branca em volta do pescoço... Para meu último voo vou enrolar no meu corpo a bandeira do Sol Nascente que você me deu e vou colocar uma foto sua no peito... Quando você ouvir pelo rádio que navios inimigos foram afundados, por favor lembre que mergulhei em um deles.
Amanhã não estarei mais vivo. Os que saíram em missão ontem estão todos mortos? Não consigo crer que seja real. Sinto como se fossem retornar de repente. Você talvez pense a mesma coisa em relação a mim. Mas, por favor, desista. Por favor, chore. Mas, por favor, não fique tão triste.
Parto antes de você. E me pergunto se me será permitido ir para o céu. Ore por mim, mãe. Não suportaria a ideia de ir para um lugar onde você não se juntará a mim mais tarde.
Amanhã mergulho contra uma flotilha de porta-aviões inimigos. Se você fizer um funeral religioso, coloque a data certa: 10 de abril.
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Reportagem  por Emiko Ohnuki-Tierney
Fonte:  http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-61/diario/patria-e-morte