quinta-feira, 14 de março de 2013

Fofura interiorana se mistura à intolerância ao casamento gay

MARCELO COELHO*
 
 
Para avaliar melhor as reais chances de dom Odilo Scherer, eu tinha dado uma olhada nos jornais argentinos destes últimos dias. Até eles, pelo que pude ver, colocavam o brasileiro como favorito.

A surpresa, portanto, não poderia ser maior. O próprio Jorge Mario Bergoglio, ao surgir na janela e dizer suas primeiras palavras, parecia completamente atônito.

Tanto que sua primeira frase foi a menos papal, e a menos preparada que se pudesse imaginar: "Boa noite".

Como assim, "boa noite"? Ao fundo, uma bandinha tocava. No final do discurso, Bergoglio se referiu a ter sido eleito bispo "desta bela cidade".

O papa, como se sabe, é o bispo de Roma. Mas dizer, naquela praça onde se reuniam pessoas de todas as partes do mundo, que Roma "é uma bela cidade" intensificou a nota interiorana da ocasião.

O Vaticano se tornou, de repente, muito simples. O nome escolhido por Bergoglio, o de Francisco, também contribui para essa imagem de modéstia e de pobreza, ao lembrar o santo de Assis.

É sabido que, em Buenos Aires, ele prefere morar num apartamento pequeno a ocupar o palácio arquidiocesano; que anda de ônibus e cozinha as próprias refeições.

Apareceu na sacada (eu ia dizendo "janelinha", mas é bem grande) só com as roupas brancas, sem a estola vermelha -que só apareceu depois.

Mais significativo do que tudo isso foi o fato de que Bergoglio, em vez de sair abençoando a multidão, pediu primeiro uma bênção dos fiéis para ele próprio.

Nomes próprios têm certa mágica. Sem dúvida, Bergoglio não rima, neste momento, com "orgoglio", orgulho.

Inevitável a multiplicação de piadinhas sobre o fato de termos um papa argentino. Detestando os preconceitos com nossos vizinhos, fico feliz de registrar uma primeira impressão auspiciosa: temos um argentino humilde no papado.

Reformador? "Progressista"? Midiático? Burocrata? Talvez a tentativa, ou o mistério, da escolha tenha sido buscar uma figura que transcendesse as divisões e impasses reais do Vaticano, alçando a figura papal a uma espécie de nuvem de fofura, branquinha como a fumaça que saiu da chaminé nesta tarde -e como a lã que cobre o cordeiro de Deus.

Não se trata daqueles prodígios de simpatia pelos quais eu estava torcendo.

O americano Dolan, de proporções pantagruélicas, aparecia num vídeo às gargalhadas, com uma tremenda marreta nas mãos, para inaugurar não sei que reforma nas paredes de um edifício. O filipino Luis Tagle chora como um menino ao ser nomeado cardeal, e ri como num desenho animado durante uma homilia.

Ainda assim, Bergoglio rompe com a antipatia e o aspecto robótico que, tanto quanto a sofisticação intelectual, têm sido a tônica dos anos Ratzinger.

Será suficiente a cordura do novo papa? Cito suas palavras a respeito do casamento gay, aprovado há pouco tempo na Argentina.

O debate não era apenas "uma luta política", disse ele, mas "uma pretensão destrutiva aos planos de Deus". Mais do que isso, é um lance do "pai da mentira".

O casamento gay, trovejava Bergoglio, é fruto da "inveja do demônio, pela qual o pecado entrou no mundo, e cuja artimanha pretende destruir a imagem de Deus".

Santo homem.

Mas o Brasil não aguenta ficar para trás. Tem o seu primeiro clérigo xiita, o paulistano Rodrigo Jalloul, no caminho de uma escalada ao posto de aiatolá. 
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* Colunista da Folha
Fonte: Folha on line, 14/03/2013
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