sábado, 27 de abril de 2013

Coetzee e a censura

 André Klaudat*
Tivemos a honra de ouvir a conferência, no Salão de Atos da UFRGS no dia 13 de abril, do escritor sul-africano John Maxwell Coetzee, Nobel de Literatura em 2003. Sua vinda foi uma corajosa iniciativa conjunta do Litercultura de Curitiba e da Filosofia da UFRGS. A conferência tratou de como a censura no apartheid avaliou três obras do escritor e da natureza da censura em geral. A vinda de Coetzee é especialmente interessante em função do seu background anglo-saxão e porque se trata de um dos laureados mais discutidos nos últimos anos.

Em 1994, assumiu o poder na África do Sul um governo eleito popularmente que abriu os arquivos do Diretório de Publicações. O escritor teve acesso, então, ao que os censores escreveram sobre No Coração do País (livro para o qual a vinda de Coetzee ao Brasil parece que facilitará uma tradução), À Espera dos Bárbaros e Vida e Época de Michael K. (As comparações são inevitáveis: quando nós saberemos mais sobre o que nos aconteceu?)

Coetzee explicou como as preocupações centrais dos censores eram inicialmente mais morais: as relações sexuais inter-raciais, vistas, a partir da ideologia racista do século 19, como responsáveis pela degeneração da raça dos africâner. (Para o nosso crédito, vai a teoria do branqueamento, criação do pensamento nativo: dada a miscigenação e sendo a raça branca superior, então estamos a caminho do branqueamento do povo brasileiro.)

Os relatórios dos censores dos três livros convergem para a avaliação de que não obstante a presença de sexo entre brancos e negros, e outras obscenidades, esses acontecimentos recebem tratamento apenas “funcional” e não apresentam, portanto, ameaça real. Os censores também reconhecem a excelência literária e a envergadura intelectual do autor, atestando que se trata de obra séria que não é de leitura recreativa e que receberá, portanto, a atenção somente de intelectuais. Resultado: as obras não são censuradas.

Coetzee não consegue deixar de se perguntar por que uma passagem explícita sobre tortura de prisioneiros no início de À Espera dos Bárbaros não foi merecedora da atenção do censor, isso em um período em que jornais não conservadores noticiavam veladamente mortes por uma espécie típica de acidente: prisioneiro escorrega em pedaço de sabão no banho e bate a cabeça fatalmente. Segundo Coetzee, todo mundo com algum discernimento compreendia o que isso significava. (Por aqui, “se noticiava”, por exemplo, que Wladimir Herzog havia se suicidado.) A resposta crítica do escritor é que os censores se viam também como protetores e promotores das letras, da boa literatura. Como tais, se viam como uma espécie de resenhistas com poderes especiais.

Mas quem são esses censores? Quanto ao tipo de pessoa, Coetzee está convencido de ter uma mensagem de valia mais ampla do que para seu país somente. Esses homens e mulheres são eles próprios escritores renomados, professores universitários, pessoas de boa formação educacional, que trabalham em universidades importantes como a Universidade da Cidade do Cabo, da qual o próprio Coetzee foi professor de inglês. (Por aqui, tivemos delações na própria universidade.) Qual é a mensagem?

Que censores não são necessariamente burocratas insignificantes sem inteligência. Eles podem ser pessoas com um emprego respeitável que se dedicam àquelas “resenhas” especiais num incremento de renda talvez. Coetzee os imagina como sujeitos sofisticados a se acomodarem em seus lares lendo Trollope e Austen e ouvindo Mozart. (Que romances liam os nossos censores possivelmente intelectualizados?)

Mas há mais nessa mensagem. Alguns dos censores de Coetzee eram pessoas que ele conhecia pessoalmente: tinha tomado chá na casa de uma censora e discutido a situação da literatura no país; tinha participado de um churrasco com a família de outro. Isso ajuda Coetzee a entender o tratamento especial que recebeu. Porque era branco africâner, oriundo da mesma classe social e porque não era popular que seus livros foram autorizados para a venda. (A importância da origem de classe comum está, no nosso caso, muito bem retratada – no que toca um esforço de distensão das cúpulas da igreja católica e do regime militar em 1970, que envolvia encontros secretos de uma Comissão Bipartite –, no livro do brasilianista norte-americano Kenneth P. Serbin [Diálogos na Sombra: Bispos e Militares, Tortura e Justiça Social na Ditadura; 2001]: mais do que ações pautadas por razões políticas consensuais, os membros dessa comissão “se entendiam” porque eram oriundos da mesma elite do país.)

Em relação ao mencionado caso do censor não interessado na passagem sobre a tortura, Coetzee faz uma rara revelação do propósito crítico de sua literatura: gosta de pensar que o censor era moralmente normal e que a leitura do seu livro o tenha feito realizar um exame aprofundado do seu papel de censor. E isso apesar da “negligência oficial” quanto à passagem. No entanto, o que importa aqui é o propósito de Coetzee com sua arte.

O escritor em nenhum momento da conferência explicou por que se mudou para a Austrália em 2002 e nem comentou a fortíssima e conhecida reação do A.N.C. (Congresso Nacional Africano, o partido no poder desde 1994) e seus intelectuais à obra Desonra. É certo que não foi censura na acepção na qual a conferência tomou o termo, mas poderia ser de interesse para quem fez afirmações finais tão enigmáticas sobre a natureza da censura em geral. Ou será que foi um outro Coetzee, não ele, que nos ofereceu uma conferência tão autobiográfica? A dúvida tem alguma justificativa, bastando notar, entre outras coisas, o expediente na conferência de aceitação do Nobel (contar uma estória cujo título é Ele e seu Homem), a presença da personagem J.C. em Diário de um Ano Ruim e a comparação ofensiva da novelista Elizabeth Costello das indústrias de processamento de carnes com os campos de concentração nazista em Elizabeth Costello. Mas, também no final da conferência, parecia ser John Coetzee falando.

A conferência acabou abruptamente com uma reflexão sobre a natureza da censura em geral. Ponderou o autor sobre se pessoas de 60 anos atrás acreditariam que nossas sociedades modernas, crentes no seu progresso moral, consideram crime possuir imagens de crianças nuas e resistem a uma avaliação crítica do Islã nos termos que já foram aplicados ao Cristianismo.

A avaliação: não existe progresso quando se trata de censura. Presumivelmente, por ser um ímpeto inextinguível em nós. Com a consequência de que se nos negam um objeto, por indesejado, buscamos outro. Coetzee: mesmo com todas as mudanças, mais as coisas continuam as mesmas.
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* Doutor em Filosofia e professor do Departamento de Filosofia da UFRGS
Foto  J.M. Coetzee durante sua conferência no Salão de Atos da UFRGS, em Porto Alegre
Fonte: ZH on line, 26/04/2013

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