quarta-feira, 17 de abril de 2013

"Papa Francisco - Conversas com Jorge Bergoglio": família, vocação e escolhas culturais, da leitura, à dança, do cinema ao futebol

Capa
"Papa Francisco - Conversas com Jorge Bergoglio", lançado esta terça-feira nas livrarias pela Paulinas Editora, é o resultado de uma entrevista ao arcebispo de Buenos Aires originalmente publicada em 2010 na Argentina.

«Não se trata apenas de uma biografia, mas é um testemunho direto, em primeira pessoa, onde o novo papa dá a conhecer os acontecimentos que marcaram a sua vida, traçando um impressivo auto-retrato», refere a nota de apresentação. 

A conversa, que se prolongou por vários meses, é dirigida pelos jornalistas Sergio Rubin, argentino, e Francesca Ambrogetti, italiana. 

Apresentamos um dos capítulos da obra, onde Bergoglio fala sobre episódios da infância, família, vocação e as escolhas culturais, da leitura à dança, do cinema ao futebol. 

***

O cardeal Bergoglio era sempre extremamente pontual quando nos tinha de receber na sede do arcebispado. Mas um dia demorou a vir ao nosso encontro. Pensámos que estaria atrasado por urgências próprias do seu cargo.

Enquanto aguardávamos na receção, vimo-lo passar com um termo e uns bolos. Aquilo chamou-nos a atenção, porque não se costuma fazer um intervalo para comer qualquer coisa entre as audiências. Alguns minutos mais tarde, vimo-lo a despedir-se de um casal e os seus dois filhos, de condição humilde. Depois viemos a saber que o termo – com água quente para o chá-mate – e os bolos eram para essa família, oriunda do Chaco, que tinha conhecido o cardeal acidentalmente e que quis ir cumprimentá-lo antes de regressar à sua província. Apesar do inesperado da visita, Bergoglio acolheu-os com delicadeza, interessou-se pela sua situação e despediu-se deles com um abraço afetuoso.

- Peço perdão pela demora, mas a vinda desta família não estava prevista -, desculpou-se, enquanto nos dirigíamos para a sala das audiências.

O que o cardeal não imaginava era que aquele caloroso episódio que acabávamos de presenciar nos levara a modificar a orientação da conversa que tínhamos concebido. Fez com que deixássemos de lado o questionário habitual sobre um tema pontual e, em contrapartida, quiséssemos indagar acerca da sua personalidade. Desta vez, nada de perguntas sobre problemáticas religiosas, sociais ou culturais. Queríamos conhecer aspetos da sua vida cotidiana, os seus costumes, os seus gostos, os seus afetos. Conhecer, enfim, o homem por trás do alto dignitário eclesiástico, diríamos utilizando um lugar-comum no jornalismo.

Bergoglio aceitou a nossa proposta com uma exceção: “Tudo bem, mas nada do tipo Corín Tellado”, disse ele fazendo alusão à famosa escritora espanhola de histórias românticas. “Só um pouco não fazia mal”, retorquimos, curiosos. E começámos…

Como se apresentaria a um grupo que não conhece?
Sou Jorge Bergoglio, padre. É que eu gosto de ser padre.

Um lugar no mundo?
Buenos Aires.

Uma pessoa?
A minha avó.

Como prefere saber as notícias?
Lendo os jornais. A rádio ligo-a para ouvir música clássica.
Internet?

Talvez faça como um dos meus antecessores, o cardeal Aramburu, que começou a utilizá-la quando resignou, ao fazer 75 anos.
Viaja muito de metro. É o seu transporte preferido?
Apanho-o quase sempre pela rapidez, mas gosto mais do autocarro, porque vejo a rua.
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Teve alguma namorada?
Sim. Fazia parte do grupo de amigos com que íamos dançar.

Porque é que acabou o namoro?
Descobri a minha vocação religiosa.

Tem algum familiar que também tenha abraçado a vocação religiosa?
Sim, o filho da minha irmã Marta. É sacerdote jesuíta como eu.

Algum hobby?
Quando era novo colecionava selos. Agora, ler, de que gosto muito, e ouvir música.

Uma obra literária?
Adoro a poesia de Hölderlin. Também muitas obras da literatura italiana.

Por exemplo?
Terei lido umas quatro vezes Os Noivos. Ouro tanto A divina comédia. Dostoiévski e Marechal tocam-me.

Borges? O senhor conheceu-o.
Nem é preciso dizer! Além disso, Borges tinha a genialidade de falar praticamente de tudo sem se vangloriar disso. Era um homem muito sapiencial, muito profundo. A imagem que tenho de Borges perante a vida é a de um homem que arruma as coisas no seu sítio, que organiza os livros nas prateleiras como o bibliotecário que ele era.

Borges era agnóstico.
Um agnóstico que rezava o Pai Nosso todas as noites, porque tinha prometido à sua mãe e morreu assistido religiosamente.

Uma composição musical?
Entre as que mais admiro está a abertura Leonora número três, de Beethoven, na versão de Furtwängler, que é, no meu entender, o melhor maestro de algumas das suas sinfonias e das obras de Wagner. 

Gosta de tango?
Imenso. É uma coisa que me sai de dentro. Creio conhecer muito das suas duas etapas. Da primeira etapa, os meus preferidos são a orquestra de D’Arienzo e, como cantores, Carlos Gardel, Julio Sosa e Ada Falcón, que depois foi para freira. A Açucena Maizani dei-lhe a extrema-unção. Conhecia-a, porque éramos vizinhos, e quando soube que ela estava internada no hospital, fui vê-la. Recordo que me encontrei lá com Virginia Luque e Hugo Del Carril. Da segunda etapa, admiro muito Astor Piazzola e Amelita Baltar, que é quem melhor canta as suas obras.
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Cucificação Branca, Chagall
Sabe dançá-lo?
Sim. Dancei quando era novo, embora preferisse a milonga.

Um quadro?
A Crucificação Branca, de Marc Chagall.

De que género de filmes gosta?
Gosto dos filmes de Tita Merello, é claro, e dos do neorrealismo italiano, em que eu e os meus irmãos fomos iniciados pelos meus pais. Não deixaram que faltássemos a nenhum de Ana Magnani e Aldo Fabrizi, que – tal como com as óperas – também nos explicaram. Chamavam-nos a atenção para duas ou três coisas para nos orientarmos; íamos ao cinema do bairro, onde passavam três filmes seguidos.

Há algum filme que recorde especialmente?
A Festa de Babette, mais recente, tocou-me imenso. E muitos do cinema argentino. Lembro-me das irmãs Legrand, Mirtha e Silvia, no filme Claro de Luna. Tinha eu oito ou nove anos. Um dos grandes filmes do cinema argentino foi Los Isleros, realizado por Lucas Demare, uma obra-prima. E, há alguns anos, diverti-me com Esperando la Carroza, mas já não vou ao cinema.

O seu desporto favorito?
Quando era novo, praticava basquetebol, mas gostava de ir ao estádio ver futebol. Íamos a família toda, incluindo a minha mãe – que nos acompanhou até 1946 – para vermos o San Lorenzo, a equipa dos nossos amores: os meus pais eram de Almagro, o bairro do clube.

Alguma recordação futebolística especial?
A brilhante campanha que a equipa fez nesse ano. Aquele golo de Pontoni quase merecia um prémio Nobel. Eram outros tempos. O máximo que se dizia ao árbitro era patife, sem-vergonha, vendido… Isto é, nada comparado com os insultos de agora.

Que línguas fala?
Parloteio o italiano (na realidade, pudemos verificar que o fala perfeitamente). Quanto a outras línguas, para ser mais preciso deveria dizer “as que falava”, pela falta de prática. Em francês, falava sem dificuldade, e desenvencilhava-me no alemão. A que sempre me custou mais foi o inglês, sobretudo a fonética, porque tenho mau ouvido. E, é claro, entendo o piemontês, que foi o som da minha infância.
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Qual foi a sua primeira viagem ao estrangeiro?
Foi à Colômbia, em 1970. Depois visitei os noviciados da América Latina. No México, conheci pela primeira vez um condomínio fechado, uma coisa que naquela época ainda não existia na Argentina. Espantou-me ver como um grupo se segregava do resto da sociedade.

Quando é que foi à Europa pela primeira vez?
No dia quatro de setembro de 1970. Fui primeiro a Madrid e, depois, visitei os noviciados do resto da Europa. Outra viagem a seguir foi à Irlanda para praticar inglês. Lembro-me que viajei no Natal de mil novecentos e oitenta e que ao meu aldo estava sentado um casal idoso judeu que ia para Jerusalém. Simpaticíssimos. Quando, depois do jantar, anunciaram que, por ser festa, nos iam servir um gelado, o homem manifestou, compungido, que não podia comer o gelado porque tinha comido carne. Como se sabe, eles não misturam a carne com o leite, que é a base com que se prepara o gelado. No entanto, alguns instantes depois olhou para mim com um sorriso cúmplice e exclamou: “Mas hoje é Natal, padre!”. Comeu o gelado, e pronto. Quase lhe dou um beijo…

Como foi o encontro com os seus familiares em Itália? O que sentiu ao conhecer a região dos seus antepassados?
O que é que posso dizer? Que me senti como se estivesse em minha casa a falar piemontês. Conheci um irmão do meu avô, os meus tios, os meus primos. A minha prima mais velha tem 78 anos e quando vou visitá-la é como se eu sempre tivesse vivido lá. Ajudo-a nas lides domésticas, ponho a mesa… De qualquer forma, evito as viagens.

Porquê?
Porque sou “casalingo”, uma palavra italiana que quer dizer caseiro. Amo o meu lugar. Amo Buenos Aires.

Como é que, nas suas viagens, sentia a Argentina vista de fora?
Com muitas saudades. Depois de algum tempo queria sempre voltar. Recordo que, quando estava em Frankfurt a fazer a tese, eu ia passear todas as tardes até ao cemitério. De lá conseguia-se ver o aeroporto. Uma vez, um amigo encontrou-me lá e perguntou-me o que fazia eu ali, e respondi-lhe: “Digo adeus aos aviões… digo adeus aos aviões que vão para a Argentina…”

Na vida cotidiana, o que é para si um grande sacrifício?
Muitas coisas. Por exemplo, fazer uma vigília de oração depois da meia-noite.

A propósito, quantas horas dorme por dia?
Depende, mas costuma ser à volta de cinco horas. Deito-me cedo e acordo sem despertador às quatro da manhã. Mas, isso sim, durmo quarenta minutos de sesta.

Qual é para si a maior das virtudes?
Bom, a virtude do amor; de dar o lugar ao outro, e isto numa atitude de mansidão. A mansidão seduz-me tanto! Peço sempre a Deus que me dê um coração manso.

E o pior dos pecados?
Se considero o amor como a maior virtude, terei de dizer, logicamente, que o pior dos pecados é o ódio, mas o que mais me repugna é a soberba, “estar convencido”. Quando me encontrei numa situação em que me vi “um convencido”, senti uma grande vergonha interior e pedi perdão a Deus, pois ninguém está livre de cair nessas coisas. 

O que é que salvaria em primeiro lugar se fosse vítima de um incêndio?
O breviário e a agenda. Lamentaria imenso perdê-los. Na agenda tenho todos os compromissos, as direções, os telefones. E estou muito agarrado ao breviário: é a primeira coisa que abro de manhã e a última que fecho antes de me deitar. Quando viajo em certas circunstâncias tenho de levar os dois volumes do breviário e transporto-os na mala de mão. No meio das suas páginas guardo o testamento do meu avô, as suas cartas e o poema “Rassa nôstraña”, de Nino Costa, a que antes me referi.

Lembra-se de alguma carta em particular da sua avó?
Há uma que eu valorizo imenso que ela me escreveu meio em italiano, meio em castelhano, em 1967, por motivo da minha ordenação. Para o caso de ela morrer antes, teve a precaução de a redigir antecipadamente, para que ma entregassem, juntamente com uma prenda, no dia em que eu fosse sacerdote. Felizmente, ela ainda vivia quando me ordenaram e pôde entregar-me as duas coisas. Tenho aqui essa carta (pega no breviário e procura-a no meio das páginas).

Quer lê-la?
Sim, claro. “Neste lindo dia em que podes ter nas tuas mãos consagradas o Cristo Salvador e em que se abre à tua frente um amplo caminho para o apostolado mais profundo, deixo-te este modesto presente, de muito pouco valor material, mas de muito elevado valor espiritual”.

E o que diz o testamento? (volta a esquadrinhar no breviário).
Num dos parágrafos escreveu: “Que estes meus netos, a quem entreguei o melhor do meu coração, tenham uma vida longa e feliz, mas se algum dia a dor, a doença ou a perda de uma pessoa amada os encher de desconsolo, recordem que um suspiro dirigido ao Tabernáculo, onde está o mártir maior e augusto, e um olhar a Maria ao pé da cruz, podem fazer cair uma gota de bálsamo sobre as feridas mais profundas e dolorosas”.
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Como foi o momento em que, sendo apenas mais um sacerdote da residência jesuíta de Córdoba, recebeu a notícia de que ia ser bispo auxiliar, nada mais nada menos que da sua amada Buenos Aires?
O Núncio Apostólico de então, monsenhor Ubaldo Calabresi, chamava-me para me consultar sobre alguns sacerdotes que, certamente, seriam candidatos a bispo. Um dia chamou-me e disse-me que dessa vez a consulta iria ser pessoal. Como a companhia aérea efetuava o voo Buenos Aires-Córdoba-Mendoza e vice-versa, pediu-me que reuníssemos no aeroporto enquanto o avião ia a Mendoza e voltava. Foi assim que conversámos ali – era o dia 13 de maio de 1992 -, pediu-me a opinião sobre temas sérios e, quando o avião, depois de vir de Mendoza, estava prestes a descolar de regresso a Buenos Aires e estavam a avisar que os passageiros tinham de embarcar, ele informa-me: “Ah… uma última coisa… foi nomeado bispo auxiliar de Buenos Aires e a designação é tornada pública no dia vinte”… Foi assim, simplesmente, que ele me disse.

E qual foi a sua reação?
Bloqueei. Como já disse antes, a seguir a um choque, bom ou mau, bloqueio sempre. E a minha primeira reação também é sempre má.

Reagiu da mesma forma quando foi nomeado bispo coadjutor com direito a sucessão do cardeal Quarracino?
Foi igual. Como eu era seu vigário-geral, quando Quarracino pediu a Roma um coadjutor, eu pedi-lhe que não me mandasse para nenhuma diocese, mas sim para voltar a ser bispo auxiliar encarregado da vigariaria de uma zona de Buenos Aires. “Sou portenho e não sei fazer nada fora de Buenos Aires”, expliquei-lhe. Mas no dia 27 de maio de 1997, a meio da manhã, Calabresi chama-me e convida-me para almoçar. Quando estávamos a tomar o café, e eu me preparara para lhe agradecer o convite e me despedir, vejo que trazem uma tarte e uma garrafa de champanhe. Pensei que eram os anos dele e quase lhe dou os parabéns. Mas a surpresa veio quando lhe perguntei. “Não, não faço anos – respondeu-me com um grande sorriso -, o que se passa é que o senhor é o novo bispo coadjutor de Buenos Aires”.

Já que estamos a falar disto, o que é que sentiu quando ouviu uma vez e outra o seu nome na Capela Sistina durante as votações para a eleição do sucessor de João Paulo II?
Bergoglio ficou sério, um pouco tenso. Por fim, esboçou um sorriso e respondeu:
Quando o conclave começa nós os cardeais juramos guardar segredo; não podemos falar do que lá acontece.

Pelo menos diga-nos o que sentia quando via o seu nome entre os grandes candidatos a Papa…
Pudor, vergonha. Pensava que os jornalistas deviam estar loucos.

Ou teriam alguma informação?
Com os seus prognósticos, cobriam um amplo espetro. Diziam, por exemplo, que os papáveis eram nove e colocavam dois europeus, entre eles Ratzinger, e dois latino-americanos, entre outros. Assim, diminuíam a margem de erro e melhoravam as hipóteses de acertar.

Então, nós jornalistas somos muito imaginativos…
Muito imaginativos…

 In Papa Francisco - Conversas com Jorge Bergoglio, ed. Paulinas
16.04.13
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A entrevista integra o número 19 do "Observatório da Cultura" (abril 2013).
Fonte:  http://www.snpcultura.org/escolhas_culturais_papa_francisco.html

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