quarta-feira, 22 de maio de 2013

"A fé vive de afeto"

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José Frazão Correia, professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, é um dos intervenientes na 9.ª Jornada Nacional da Pastoral da Cultura, dedicada ao tema "Culturas Juvenis Emergentes", que decorre a 21 de junho em Fátima.

O sacerdote colabora no Centro Académico de Braga (CAB), organismo da Pastoral Universitária dos Jesuítas, e é responsável pela formação do filosofado da Companhia de Jesus na mesma cidade.

É da sua autoria o novo livro "A fé vive de afeto - Variações sobre um tema vital", publicado em maio pela Paulinas Editora, de que adiantamos um excerto.

Entre os intervenientes na Jornada estará o sociólogo José Machado Pais, investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais de Universidade de Lisboa e professor convidado do ISCTE, além de responsável de vários artigos e obras, a última das quais "Sexualidade e Afetos Juvenis" (ICS), publicada em 2012.

O cantor e compositor Manuel Fúria, a atriz Inês Nogueira, o ator Miguel Loureiro e o presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais, D. Pio Alves, um dos bispos auxiliares do Porto, também participam na Jornada que inclui conferências, mesas redondas e momentos artísticos.

As inscrições na Jornada, que decorrem preferencialmente através do site da Pastoral da Cultura, abrem durante este mês.

A fé vive de afeto

«Milagre é o encontro. Tão necessário como a água. Tão precioso como os poços no deserto. Nós que nos multiplicamos em infinitos contactos, não é fácil nem frequente que nos encontremos, tantas são as indiferenças e os cálculos, os desacertos e os desenganos com que desenhamos as nossas relações. Mesmo as mais próximas. Fazemos quase tudo e damos tanto para nos atrairmos mutuamente. Mas, logo que nos aproximamos, já não nos suportamos. Sobretudo, não suportamos o-espaço-aberto-entre-nós, esse lugar que precede e que excede, a ti e a mim, sem ser propriedade tua nem minha, para implicar a ambos em algo maior e, ainda, inédito. 

Como um outro ventre ma terno que nos dá à luz, é o espaço da indigência e da fecundidade, o motivo para uma peregrinação imprevisível e sem termo. Sempre dom, sempre graça. Sempre tarefa, sempre custo. Atravessá-lo é um risco. Por isso, tendemos a evitá-lo ou a combatê-lo. E, assim, permanecemos, desajustadamente, aquém ou além de nós mesmos e do que entre nós pode ser reconhecido e gerado. Ou demasiado tímidos ou demasiado arrogantes. Sempre que os meus interesses não suportam a tua diferença, forço-te a que te dissolvas em mim. Ou, então, sempre que a intensidade da tua diferença apaga a minha autonomia, rendo-me a ti e confundo-me em ti. Tão facilmente te conquisto como me apago. Tão rapidamente te prometo amor quan to te declaro guerra.
Na realidade, por entre medos e ameaças, receamos tanto a perda como o ganho. A perda do lugar do próprio saber e das seguranças já conquistadas, porque o que os outros me prometem ainda é terra desconhecida. E esta não se atravessa com mapa detalhado e não é claro que se encontre sempre ouro. Mas, estranhamente, tememos, também, o ganho. O ganho da diferença. Isto é, do reconhecimento de que não posso ser sem me expor ao que tu e todos os outros são. É a regra difícil desse estranho jogo no qual quem quiser ganhar há de perder. Ou, melhor, há de perder-se. Sim, no encontro de afeto que é laço de vida.

Porém, entre-o-tanto-e-o-tão-pouco-que-somos, o milagre acontece. E acontece sempre que nos reconhecemos reconhecidos. Quero dizer, sempre que reconheço que o que existe de mais verdadeiro em mim me é restituído pelo espaço de humanidade que se abre entre nós. E não tenho que me anular diante de ti. É na disponibilidade que manifestas em dar-me tempo, o tempo de que preciso para percorrer as minhas distâncias, que me reconheço reconhecido. E na palavra que me dás para que eu possa dizer-me, sim, porque não poderia ter consciência de mim e do dom que a vida é se não narrasse o meu próprio caminho e as direções que tomei, ainda que, tantas, tenham sido erradas. E, também, no lugar que me cedes para que eu assuma, de novo, o meu próprio lugar, à medida e ao ritmo das minhas possibilidades.

Quando me reconheces no que sou – e não me exiges que finja ser o que não sou –, sou eu que reconheço com gratidão o quanto já me foi dado e, sobretudo, o que ainda poderei ser. Assim mesmo, sempre que entre-nós-me-reconheço-reconhecido, já bebo da vida que é eterna – toco a sua origem sagrada, recoloco-a nos lugares do meu quotidiano, confirmo a bondade do desejo de a ver resgatada à usura do tempo. No teu reconhecimento, vivo. Entre-tanto, aprendo a reconhecer que, assim, Deus se me vai revelando.

É este o milagre que vejo acontecer no encontro de Jesus com a samaritana, à beira do poço (Jo 4,1-41). Nas insinuações e nos mal-entendidos, nos suspiros e nos  pedidos, é pelo reconhecimento recíproco que a água vai jorrando. Jorra a Vida pela vida de um e de outro: a vida ambígua da mulher que Jesus sabe fazer contar; a vida de que Jesus vive, da qual a samaritana quererá beber. É Deus que se insinua no espaço de hospitalidade que se desenha entre a sede de um e a água do outro. E o que há entre eles senão o poço do reconhecimento? No reconhecimento da verdade do que esta mulher é, Jesus chega a ser reconhecido como dom de Deus.

Não estranhemos, pois, que Jesus diga tanto de si nos encontros que vive entre nós. Uns, inesperados, como que por acaso. Outros, improváveis, mas desejados e desenhados ardentemente. Jesus, o reparador dos encontros em falta, o desenhador de encontros a haver. O Filho revela-se, assim, um homem entre homens e mulheres: judeus e samaritanos, dos nossos e dos que não são como nós. As circunstâncias e as ocasiões – um poço ao meio-dia, uma refeição ao entardecer – circunscrevem o lugar no qual se reconhece Aquele em quem e por quem Jesus vive. Entre nós, com tanto afeto e realizando tantos laços, revela-se-a-Vida-a-agir, fonte da qual brotam as águas, saciedade à qual suspiram as sedes.

Poderá a fé no Filho de Deus encarnado ser menos que esta graça imensa de nos reconhecermos biograficamente reconhecidos no dom da vida que corre entre nós?
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Fonte:  http://www.snpcultura.org/21/05/2013

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