sábado, 18 de maio de 2013

O Papa Francisco é um paradoxo?

Hans Küng

 
“Nós não devemos, em todo o caso, nos resignar, mas, na falta de impulsos reformistas ‘a partir de cima’, a partir da hierarquia, devemos promover decididamente reformas ‘a partir de baixo’, a partir do povo. Se o Papa Francisco adotar o enfoque das reformas, contará com o amplo apoio do povo, para além dos muros da Igreja católica. Mas se, ao contrário, optar por continuar como até agora e não solucionar a necessidade de reformas, o grito de ‘indignai-vos! Indignez-vous!’ ressoará cada vez mais forte inclusive dentro da própria Igreja católica e provocará reformas a partir de baixo que se materializarão inclusive sem a aprovação da hierarquia e, em muitos casos, apesar de suas tentativas de abafá-las", *

Quem iria pensá-lo? Quando, por ocasião do meu 85º aniversário, tomei a resoluta decisão de renunciar aos meus cargos honoríficos, estava persuadido de que o sonho que eu vinha acalentando há décadas de presenciar novamente uma mudança profunda em nossa Igreja, como com João XXIII, nunca chegaria a presenciar em vida.

Eis que meu ex-companheiro teólogo Joseph Ratzinger – ambos estamos com 85 anos – tomou a decisão, antes de mim, de renunciar ao seu cargo de Papa, e exatamente no dia 19 de março de 2013, dia do seu onomástico e do meu aniversário, passou a ocupar seu posto um novo Papa com o surpreendente nome de Francisco.

Terá Jorge Mario Bergoglio refletido sobre o fato de que nenhum Papa se havia atrevido, até agora, a escolher o nome de Francisco? Em todo caso, o argentino estava consciente de que com o nome de Francisco se estava vinculando com Francisco de Assis, o universalmente conhecido marginal do século XIII, esse mundano que amava a vida, filho de um rico comerciante de tecidos de Assis que, aos 24 anos, renunciou à sua família, à riqueza e à sua carreira e inclusive devolveu ao seu pai suas luxuosas roupas.

É surpreendente que o Papa Francisco tenha optado por um novo estilo desde o momento em que assumiu o cargo: ao contrário de seu antecessor, não quis nem a mitra ornada com ouro e pedras preciosas, nem a camalha púrpura guarnecida com arminho, nem os sapatos vermelhos feitos sob medida, nem o pomposo trono, nem a tiara... Igualmente surpreendente é o fato de que o novo Papa recusa conscientemente os gestos patéticos e a retórica pretensiosa para falar a língua do povo, típica desses pregadores leigos, proibidos pelos papas, tanto naquela época como atualmente.

E, por último, é surpreendente que o novo Papa não hesite em insistir sobre a proximidade com os fiéis: pede que o povo reze por ele antes que ele mesmo o abençoe; paga a conta de seu hotel como qualquer pessoa; vive a colegialidade tomando o ônibus com os cardeais, compartilhando a residência; na Quinta-feira Santa, lavou os pés de jovens presos (também de mulheres, e inclusive de uma muçulmana). É um Papa que demonstra que, como ser humano, tem os pés na terra.

Tudo isso teria alegrado Francisco de Assis, ao passo que o Papa Inocêncio III (1198-1216), na sua época, encarnava exatamente os valores contrários. Em 1209, Francisco foi visitar o Papa em Roma junto com 11 irmãos menores (fratres minores) para apresentar-lhe sua breve regra de vida “de acordo com os Santos Evangelhos”, composta exclusivamente de citações bíblicas. Ele desejava receber a aprovação papal, para sua existência baseada na pobreza e pedia a autorização para a pregação laica.
Ora, Inocêncio III, conde de Segni, nomeado Papa aos 37 anos, era um soberano nato: teólogo educado em Paris, jurista sagaz, exímio orador, administrador inteligente e diplomata refinado. Nunca antes nem depois houve um papa com tanto poder como ele. Com ele, a revolução pelo alto, lançada por Gregório VII no século XI (a “Reforma Gregoriana”), atingiu seu objetivo. Em vez do título de “vigário de Pedro”, ele preferia o de “vigário de Cristo”, que,  até o século XII, se aplicava aos bispos e sacerdotes (Inocêncio IV utilizará inclusive o de “vigário de Deus”). Ao contrário do século I e sem conseguir nunca o reconhecimento da Igreja apostólica oriental, o Papa comportou-se, a partir desse momento, como um monarca e juiz absoluto do cristianismo.

Mas o triunfal pontificado de Inocêncio III não apenas constituiu sua culminação, mas também um ponto de inflexão. Já em sua época se manifestaram os primeiros sintomas de decadência que, em parte, chegaram até nossos dias, como sinais de identidade do sistema da cúria romana: o nepotismo, a avidez extrema, a corrupção e os negócios financeiros duvidosos. Mas já nos anos 70 e 80 do século XII começaram a surgir poderosos movimentos inconformistas de penitência e pobreza (os cátaros ou os valdenses). Mas os papas e bispos reagem a estas correntes proibindo a pregação laica e condenando os “hereges”, mediante a Inquisição e inclusive com cruzadas contra eles.

Mas foi precisamente Inocêncio III quem, apesar de toda a sua política centrada no extermínio dos obstinados “hereges” (os cátaros), esforçou-se para integrar na Igreja os movimentos evangélico-apostólicos de pobreza. Inocêncio inclusive estava consciente da urgente necessidade de reformar a Igreja, para o que acabou convocando o impressionante IV Concílio de Latrão. Desta forma, após muitas exortações, acabou concedendo a Francisco de Assis a autorização de fazer sermões penitenciais. Acima do ideal da absoluta pobreza que se costumava exigir, podia, por fim, conhecer a vontade de Deus pela oração. Conta-se que por causa de um sonho premonitório, no qual um religioso baixinho e modesto teria impedido o desmoronamento da Basílica Papal de São João de Latrão, o Papa decidiu finalmente aprovar a regra de Francisco de Assis. Promulgou-a perante os cardeais no consistório, mas não permitiu que se expusesse por escrito.

Francisco de Assis representava e ainda representa a alternativa ao sistema romano. O que teria acontecido se Inocêncio e os seus tivessem começado a levar os Evangelhos novamente a sério? Entendidas de um ponto de vista espiritual, embora não literal, as exigências evangélicas de São Francisco de Assis constituíam e constituem ainda hoje um profundo questionamento do sistema romano, esse aparelho de poder centralizado, juridificado, politizado e clericalizado que, desde o século XI, se havia apoderado da causa de Cristo em Roma.

Pode ser que Inocêncio III tenha sido o único Papa que, por causa das extraordinárias qualidades e poderes que a Igreja tinha, poderia ter determinado outro caminho totalmente diferente; isso poderia ter evitado o cisma do Ocidente e o exílio em Avignon durante os séculos XIV e XV, assim como a Reforma Protestante, no século XVI. Certamente, teria implicado, já desde o século XIII, uma mudança de paradigma dentro da Igreja católica, o que não teria dividido a Igreja. Pelo contrário, a teria renovado e, ao mesmo tempo, teria reconciliado as Igrejas ocidental e oriental.

Desta maneira, as preocupações centrais de Francisco de Assis, próprias do cristianismo primitivo, continuam sendo até hoje questões postas à Igreja católica e a um Papa Francisco, cujo nome é um programa: paupertas (pobreza), humilitas (humildade) e simplicitas (simplicidade). Pode ser que isso explique porque, até agora, nenhum Papa tenha se atrevido a adotar o nome de Francisco: porque as pretensões parecem muito elevadas.

Mas isso nos leva à segunda pergunta: o que significa para um Papa, hoje, adotar corajosamente o nome de Francisco? É evidente que também não se deve idealizar a figura de Francisco de Assis, que também não estava isento de parcialidades, de exaltações e de fraquezas. Não é nenhuma norma absoluta. Mas suas preocupações, próprias do cristianismo primitivo, devem ser levadas a sério, embora não possam ser colocadas em prática literalmente, mas deveriam ser adaptadas pelo Papa e pela Igreja à época atual.

1. Paupertas, pobreza? No espírito de Inocêncio III, a Igreja é uma Igreja da riqueza, do luxo e da pompa, da avidez extrema e dos escândalos financeiros. Ao contrário, no espírito de Francisco, a Igreja é uma Igreja da política financeira transparente e da vida simples, uma Igreja que se preocupa principalmente com os pobres, os fracos e os desfavorecidos, que não acumula riquezas nem capital, mas que luta ativamente contra a pobreza e oferece condições de trabalho exemplares para os seus trabalhadores.

2. Humilitas, humildade? No espírito de Inocêncio, a Igreja é uma Igreja do poder e da dominação, da burocracia e da discriminação, da repressão e da Inquisição. Ao contrário, no espírito de Francisco, a Igreja é uma Igreja do altruísmo, do diálogo, da fraternidade, da hospitalidade inclusive em relação aos inconformados; uma Igreja do serviço despretensioso dos seus dirigentes, uma comunidade social solidária; uma Igreja que não exclui as forças, nem as inovações religiosas, mas que as faz frutificar.

3. Simplicitas, simplicidade? No espírito de Inocêncio, a Igreja é uma Igreja da imutabilidade dogmática, da censura moral e do regime jurídico, uma Igreja do medo, do direito canônico que regula tudo e da escolástica que tudo sabe. Ao contrário, no espírito de Francisco, a Igreja é uma Igreja da mensagem alegre e do regojizo, de uma teologia baseada no Evangelho, que escuta as pessoas em vez de adoutriná-las de cima, que não só ensina, mas que também está constantemente aprendendo.

Desta forma, podem-se formular assim mesmo, hoje, em vista das preocupações e das apreciações de Francisco de Assis, as opções gerais de uma Igreja católica cuja fachada brilha à base de magnificentes manifestações romanas, mas cuja estrutura interna no dia a dia das comunidades em muitos países se revela podre e quebrada, razão pela qual muitas pessoas se afastaram dela tanto interior como exteriormente.

Não obstante, ninguém acredita que uma única pessoa seja capaz de fazer todas as reformas da noite para o dia. Mesmo assim, em cinco anos seria possível uma mudança de paradigma: foi o que demonstrou, no século XI, o Papa Leão IX de Lorena (1049-1054), que preparou o terreno para a reforma de Gregório VII. E também ficou demonstrado no século XX pelo italiano João XXIII (1958-1963), que convocou o Concílio Vaticano II. Hoje, o que deveria ficar claro novamente é a direção a ser tomada: não uma involução restauradora para épocas pré-conciliares, como no caso dos Papas polonês e alemão, mas passos reformistas bem pensados, planejados e corretamente transmitidos na linha do Concílio Vaticano II.

Há uma terceira pergunta que se colocava, tanto naquela época como hoje: uma reforma da Igreja não esbarrará em sérias resistências? Não há dúvida de que forças hostis, sobretudo poderosas e ativas no espaço da cúria romana, teriam que se revelar. É pouco provável que os soberanos vaticanos permitam de bom grado que se lhes arrebata o poder que foram acumulando desde a Idade Média.

O poder da pressão da cúria é algo que também Francisco de Assis teve que experimentar. Ele, que pretendia desvencilhar-se de tudo através da pobreza, foi buscando cada vez mais o amparo da “santa mãe Igreja”. Ele não queria viver em confronto com a hierarquia, mas em conformidade com Jesus obedecendo ao Papa e à cúria: em pobreza real e na pregação laica. De fato, deixou que subissem de categoria ele e seus companheiros por meio da tonsura dentro do status dos clérigos.

Isso facilitava a atividade de pregar, mas fomentava a clericalização da comunidade jovem, que cada vez englobava mais sacerdotes. Por isso, não é surpreendente que a comunidade franciscana fosse se integrando cada vez mais ao sistema romano. Os últimos anos de Francisco ficaram obscurecidos pela tensão entre o ideal original de imitar Jesus Cristo e a acomodação de sua comunidade ao tipo conveniente de vida monacal.

Em honra a Francisco, cabe mencionar que faleceu no dia 03 de outubro de 1226 tão pobre como viveu, com tão somente 44 anos. Dez anos antes, um ano depois do IV Concílio de Latrão, havia falecido de forma totalmente inesperada o Papa Inocêncio III com a idade de 56 anos. No dia 16 de junho de 1216, foi encontrado, na catedral de Perugia, o cadáver da pessoa cujo poder, patrimônio e riqueza no trono sagrado ninguém soube incrementar tão bem como ele, abandonado por todo o mundo e totalmente desnudo, saqueado por seus próprios criados, marca simbólica da passagem do poder mundial do papa à impotência. No começo do século XIII, temos o reinado glorioso de Inocêncio III e no final do mesmo século, o do megalômano Bonifácio VIII (1294-1303), que será preso como miserável; na sequência do que, cerca de 70 anos, o papado será exilado para Avignon e desembocará no cisma do Ocidente com dois e, finalmente, três Papas.

Menos de dois séculos depois da morte de Francisco, o movimento franciscano, que tão rapidamente havia se espalhado, parece ter ficado praticamente domesticado pela Igreja católica, de forma que começou a servir à política papal como uma ordem a mais e inclusive se imiscuindo na Inquisição. Assim como foi possível domesticar finalmente a Francisco de Assis e seus companheiros dentro do sistema romano, está claro que não se pode excluir o fato de que o Papa Francisco termine ficando preso ao sistema romano que deveria reformar.

É o Papa Francisco um paradoxo? É possível conciliar a figura do Papa e a de Francisco, que são claros antônimos? Só será possível com um papa que aposte nas reformas no sentido evangélico. Não deveríamos renunciar muito cedo à nossa esperança em um Pastor Angelicus como ele.

Por último, uma quarta pergunta: o que se pode fazer se nos arrebatam de cima a esperança na reforma? Seja como for, já acabou o tempo em que o Papa e os bispos podiam contar com a obediência incondicional dos fiéis. Através da Reforma Gregoriana, do século XI, introduziu-se uma determinada mística da obediência na Igreja católica: obedecer a Deus implica em obedecer à Igreja e isso, por sua vez, implica em obedecer ao Papa, e vice-versa.

Dessa época em diante, a obediência de todos os cristãos ao Papa se impôs como uma virtude chave; obrigar a seguir ordens e a obedecer (com os métodos que foram necessários) era o estilo romano. Mas a equação medieval de “obediência a Deus = obediência à Igreja = obediência ao Papa” encerra já em si mesmo uma contradição com as palavras dos apóstolos diante do Sinédrio de Jerusalém: “É preciso obedecer antes a Deus do que aos homens”.

Nós não devemos, em todo o caso, nos resignar, mas, na falta de impulsos reformistas “a partir de cima”, a partir da hierarquia, devemos promover decididamente reformas “a partir de baixo”, a partir do povo. Se o Papa Francisco adotar o enfoque das reformas, contará com o amplo apoio do povo, para além dos muros da Igreja católica. Mas se, ao contrário, optar por continuar como até agora e não solucionar a necessidade de reformas, o grito de “indignai-vos! Indignez-vous!” ressoará cada vez mais forte inclusive dentro da própria Igreja católica e provocará reformas a partir de baixo que se materializarão inclusive sem a aprovação da hierarquia e, em muitos casos, apesar de suas tentativas de abafá-las. No pior dos casos – e isto é algo que escrevi antes da eleição do atual Papa –, a Igreja católica viverá uma nova era glacial, em vez de uma primavera, e corre o risco de ficar reduzida a uma grande seita de pouca importância.
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*Escreve Hans Küng, teólogo, em artigo publicado no jornal espanhol El País, 10-05-2013. A tradução é do Cepat. Uma versão do artigo igualmente foi publicada pela revista inglesa The Tablet, 11-05-2013.
Fonte: IHU on line, 18/05/2013
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