segunda-feira, 17 de junho de 2013

Alegoria interrompida

Daniel Galera*

'A infância de Jesus' é um livro muito estranho. Cheguei ao fim com a impressão de não ter gostado, mas consciente de que ele tinha prendido minha atenção

Em 1998, eu e um amigo viajamos à República Tcheca e decidimos visitar a cidade de Kutná Hora para conhecer o ossuário de Sedlec, uma capela católica decorada e mobiliada com os esqueletos de 40 mil pessoas. Há pirâmides de caveiras e um candelabro que contém todos os ossos do corpo humano. É um lugar inesquecível, mas voltamos de lá com uma outra experiência curiosa. Caminhando pelas ruas do subúrbio de Sedlec, começamos a ter a sensação mútua e bem esquisita de que alguma coisa importante faltava no cenário ao nosso redor.

Demoramos algum tempo para elucidar a questão: o elemento ausente era a publicidade. Embora a paisagem de Praga naqueles anos já estivesse um tanto alterada após a transição do comunismo para a democracia em 1989, Kutná Hora seguia livre não apenas de McDonald’s, mas de qualquer sinal patente de que estávamos andando por ruas de uma nação capitalista. Nos propusemos o desafio de encontrar um anúncio ou mesmo um logotipo na cidade, e apenas depois de bater muita perna encontramos a identidade gráfica da Marlboro e da Coca-Cola num boteco.

Tive esta lembrança depois de avançar algumas dezenas de páginas no último romance de J.M. Coetzee, “A infância de Jesus”. O livro conta a história de um homem chamado Simón, que chega à cidade fictícia de Novilla com a intenção de iniciar uma nova vida e encontrar a mãe de David, um menino que “aparenta ter cinco anos”, e de quem ele insiste não ser o pai. Logo ao desembarcar, os dois são acolhidos por um aparelho burocrático tão estéril quanto caridoso. Simón recebe um apartamento e um emprego braçal nas docas. O transporte público é gratuito. Para o povo local, o inconformismo é desnecessário, ou é um vício que foi deixado para trás, na vida anterior.

Pouco tempo depois de se estabelecer, ele vê uma mulher jogando tênis nas dependências de uma espécie de condomínio privado chamado La Residencia e decide que ela é a mãe do menino. O romance se desdobra mostrando a relação de David com essa nova mãe, o dia a dia de Simón com os trabalhadores das docas e com a vizinha/amiga/amante Elena, e as dificuldades de encaixar o menino no sistema educacional do país, já que ele tem uma imaginação fértil e uma visão de mundo peculiar que o impedem de aceitar, por exemplo, a ordem natural dos números ou as peculiaridades narrativas de “Dom Quixote”, livro com o qual aprende a ler sozinho.

“A infância de Jesus” é um livro muito estranho. Cheguei ao fim com a impressão de não ter gostado, mas consciente de que ele tinha prendido minha atenção e me intrigado do início ao fim. Essa estranheza tinha algo análogo à estranheza que vivenciei diante da ausência de anúncios em Kutná Hora. Não é só a publicidade que está faltando em Novilla: é também a ambição e as paixões humanas. A prosa de Coetzee tende a ser esparsa e monocórdia (sem prejuízo para a intensidade narrativa e a provocação intelectual, até pelo contrário), mas nesse romance essa característica se estende para a ambientação, a trama e a construção dos personagens. Seja pela brevidade ou pela omissão, sempre existe algo que devia estar ali e não está. Por que Simón tem tanta certeza de que reconhecerá a mãe do menino ao vê-la? Este lugar é um país, um limbo, uma realidade paralela? De onde vem o dinheiro que mantém o transporte público e paga o trabalho dos estivadores?

A perplexidade causada pelo livro se torna ainda maior porque a história é cheia de alusões bíblicas, políticas e filosóficas que nunca se confirmam ou mesmo se desenvolvem a contento. Tudo no romance dá a impressão inicial de ensejar alguma alegoria e é inevitável que o leitor vá criando essas expectativas a cada novo episódio. No fim, não sobra alegoria à qual se agarrar. A piscadinha cristã está apenas no título — e Coetzee ainda afirmou que sua intenção original era que a capa e a folha de rosto ficassem em branco, mas a editora não deixou. Um crítico do “Guardian” arriscou falar em “utopia budista” e “versão kafkiana da história da natividade”, o que faz algum sentido mas é no mínimo incompleto, como todas as tentativas de aplicar carimbo interpretativo ao romance. A maioria dos outros resenhistas admite que não entendeu nada. Coetzee toma o maior cuidado para não deixar pistas que permitam ao leitor se autocongratular dizendo “Ah! O livro é sobre isso!”

Talvez seu aspecto mais instigante seja a capacidade de ser instigante a despeito de tudo que falta. É como chegar num país em que as tensões sociais e tumultos existenciais foram removidos. A sensação de falta inicial é ilusória. “Não está faltando nada”, Elena diz a Simón. “O nada que você acha que está faltando é uma ilusão.” O mundo é só isso, sempre foi só isso. E no fim das contas parece coerente que o romance não tente nos dizer — se recuse a nos dizer — se é uma boa ideia pegar um barco e ir pra lá.
-----------------------
* Colunista

Nenhum comentário:

Postar um comentário