segunda-feira, 10 de junho de 2013

Texto e contexto

 Luis Fernando Veríssimo*
  
Na peça “Ricardo II” de Shakespeare há uma fala famosa que é muito citada como um hino patriótico à Inglaterra. Quem a diz é o duque John de Gount, tio do rei Ricardo II e pai de Henry Bolingbroke, desafeto exilado do rei, que acabará derrubando do trono. John de Gount, à beira da morte, exalta as riquezas e as glórias do seu país (“este outro Éden”, “esta pedra preciosa posta no mar prateado” a salvo “da inveja de terras menos felizes”, “este lote abençoado, este chão, este reino, esta Inglaterra” ) num tom de entusiasmo crescente que empolga até quem não é inglês – se lido até a metade. O resto da fala, raramente citada, é um lamento pelo declínio desta maravilha, cuja grandeza o rei está dilapidando. “Esta Inglaterra acostumada a conquistar, hoje é vergonhosamente derrotada por si mesma”, diz Gount, que termina desejando que “o escândalo desapareça junto com a minha vida, alegrando minha morte iminente”.

Já contei (umas cem vezes) que vi o Millôr Fernandes levantar uma plateia num encontro literário em Passo Fundo com a leitura de um texto de candente defesa da democracia e dos direitos humanos, e depois da ovação revelar que acabara de ler o discurso de posse do general Médici na Presidência da República, quando se inaugurava o período mais escuro da ditadura. Um período em que com frequência o discurso do poder contrastava com a realidade à sua volta e o texto era desmentido pelo contexto. A aula do Millôr foi sobre a força autônoma da retórica, capaz de mobilizar uma multidão que ignora seu contexto. Mas pior do que isto é quando o contexto é conhecido e mesmo assim as palavras compõem outra realidade, e empolgam e mobilizam do mesmo jeito. A história brasileira está cheia de exemplos do triunfo da oratória bacharelista sobre a realidade do momento, do dito sem a menor relação com o feito. Para ser justo com o Médici e o autor do seu discurso, é preciso reconhecer que em todo discurso de posse presidencial há um desencontro parecido entre intenção e realidade. Quem não se lembra do discurso de posse do Collor?

Shakespeare tem outros exemplos de textos em que uma parte se vira contra a outra, como a exaltação que vira lamento de John de Gount. O mais notório é a fala de Marco Antônio sobre o corpo de César assassinado, que começa dando razão aos assassinos e termina incitando a massa a matá-los. Em outro trecho da peça alguém diz que se deve ter muito, mas muito cuidado com os bons oradores.
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* Escritor. Cronista da ZH
Fonte: ZH on line, 10/06/2013
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