sábado, 24 de agosto de 2013

Peter Singer e a libertação animal no Brasil

SILVIO NEGRÃO*

 

Livro publicado nos anos 70 está no centro das atuais discussões sobre bioética

Indiscutivelmente, o livro de Peter Singer intitulado Libertação Animal, editado pela primeira vez em língua inglesa no ano de 1975, revisado e traduzido para o português em 2004, se encontra no centro das discussões das questões de ética prática e bioética.

Singer é defensor da expansão do princípio da igualdade na consideração da dor e do sofrimento para atender aos interesses e preferências tanto de humanos quanto de animais. Como uma crítica à tradição filosófica que supervaloriza o status moral do ser humano, a teoria ética de Singer busca expandir a esfera de consideração moral humana para que seja possível incluir os animais na comunidade moral, usando como critério o princípio da igual consideração de interesses semelhantes.

Desta forma, Singer argumenta que uma ação é ética quando considera os interesses daquele que é afetado, expressos em suas preferências. Para Singer, a sensibilidade ou a capacidade de sofrimento, associada à consciência desse sofrimento (senciencia), é o critério de referência para identificar os seres sujeitos de interesse. E isto indica que estes seres têm interesse em receber um tratamento que os poupe de circunstâncias dolorosas.

Contrariamente, a produção animal mundial e brasileira baseia-se em um conjunto de normas de manejo sanitário, nutricional e ambiental viabilizada pela seleção genética dos animais. Este sistema de produção busca metas de crescimento cada vez mais altas e, consequentemente, mais danosas à fisiologia animal.

O agronegócio brasileiro tem impulsionado a balança comercial e dado muito lucro às empresas do setor. De acordo com o Ministério da Agricultura, o Brasil é o quarto produtor e exportador de carne suína, e a produção vem crescendo em torno de 4% ao ano. Na avicultura, já é o terceiro produtor mundial (destaque para os Estados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul) e líder em exportação (comercializa com 142 países). É dono do segundo maior rebanho bovino efetivo do mundo. Lidera as exportações com um quinto da carne comercializada internacionalmente e vendas em mais de 180 países. Na ovinocultura, a produção anual alcança 11 milhões de toneladas de lã, principalmente no Rio Grande do Sul. Possui o maior rebanho de equinos na América Latina e o terceiro mundial. A exportação de cavalos vivos aumentou 524% entre 1997 e 2009. E somos o oitavo maior exportador de carne equina.

Então, qual é o problema? Por que não podemos produzir animais para melhorar a nossa vida?

Possíveis respostas:

A produção animal é justificada pela demanda de alimentos para a população humana. Entretanto, a produção animal nas sociedades industrializadas não constitui uma forma eficaz de produção de alimentos, uma vez que praticamente todos os animais consumidos como alimento foram engordados com grãos e outros alimentos que poderiam ter sido ingeridos diretamente pelos humanos, além de possuírem uma conversão alimentar muito baixa.

Com uma população animal em torno de 23 vezes maior que a população humana no Brasil, infelizmente, os animais e o meio ambiente não estão, verdadeiramente, contabilizados. Por exemplo, o modelo de produção agroindustrial de animais foi projetado para praticar o confinamento completo e intensivo. Isso significa que os animais são forçados a viver em gaiolas individuais ou baias coletivas projetadas para alojar o máximo de animais no mínimo de espaço físico. Entretanto, o sofrimento animal só é abordado como um assunto de relevância pelas agroindústrias quando há perda de produtividade e lucratividade. Os interesses dos animais, dos consumidores, dos produtores não são levados em conta.

Atualmente, fala-se muito em bem- estar animal. Mas, bem-estar animal é uma ciência muito nova que está sendo construída para auxiliar as empresas a alcançarem suas metas de produção e não levam em consideração as preferências dos animais, apenas melhoram alguns pontos de manejo, de construção e ambiência. Ou seja, para os animais de produção ou de fazenda, são aceitas práticas que impõem dor e sofrimento (castração e corte de cauda sem anestesia, debicagem, limitação de movimentação devido à lotação, passam a vida toda em celas ou baias individuais, dentre inúmeras outras situações). Assim, um frango de corte vive apenas 1,7% e um suíno 3,8% do tempo de vida potencial, antes de chegar ao nosso prato.

Se os consumidores de produtos de origem animal conhecessem os locais, as condições e a forma como os animais são criados e mortos, será que continuariam a consumir os corpos, ou melhor, as carcaças desses animais?

De acordo com Singer, mudar para uma dieta totalmente vegana é algo que muitas pessoas teriam dificuldade em fazer, pelo menos no começo. Também não é necessário escolher entre o mundo do agronegócio e o mundo vegano. Porém, nos parece injustificável a crueldade das granjas industriais, tanto para os animais, quanto para o ambiente físico natural, os trabalhadores e sua prole.

Os animais de produção sequer fazem parte daqueles assistidos pelas Comissões de Ética ao Uso de Animais – CEUA. Estas comissões se preocupam com os animais usados para o ensino e a pesquisa científica. Outra forma de impor as nossas vontades a seres vulneráveis às nossas ações. Curiosamente, estas comissões estão mais preocupadas em reduzir o número de animais usados e a promover uma rotatividade entre espécies, do que definirem um critério de consideração moral para servir de indicador no julgamento de quais projetos ou experimentos são “éticos”.

O ser humano não percebe a necessidade do respeito moral para ele próprio, para outros seres humanos, para os animais e para o meio ambiente, porque vive num mundo de imaginação acreditando que essa é sua realidade, e deixa de investigar quais, dentre os interesses que lhe foram ditos serem próprios dele, se constituem em seus verdadeiros interesses. Precisamos proceder a um reexame de nossa concepção de extravagâncias.

Falar sobre ética, na maioria das vezes, não é uma tarefa agradável. O pensamento comum demonstra que ter um comportamento ético é sinônimo de um trabalho árduo que envolve o autossacrifício e não traz recompensa. Mas é fundamental destinarmos um tempo das nossas vidas para refletirmos sobre estes assuntos.

Obrigado, Peter Singer, pelo seu esforço e colaboração nesta discussão!
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*Médico Veterinário. Professor efetivo das disciplinas de Bioética, Zootecnia e Saúde Animal na Universidade Regional de Blumenau-FURB/SC
Fonte: ZH on line, 24/08/2013

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