sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Compra, atividade hormonal

Noemi Jaffe*
 Mauricio Piffer/Bloomberg / Mauricio Piffer/Bloomberg
Passeio pelo shopping: quem sofre do "vício da gastança" deve procurar não um terapeuta comportamental, mas um endocrinologista

Uma empresa gigantesca, fabricante de produtos higiênicos, farmacêuticos e alimentares (sim, essa empresa existe e não é a única no gênero), está prestes a lançar um novo produto. Digamos que seja uma pasta de dentes inovadora, que torna seus dentes mais brancos, frescos e livres de germes por mais tempo, além de apresentar uma embalagem mais econômica e sustentável.

Não posso dizer quais são as estratégias dessa empresa para que o produto venda mais, porque não sou da área de marketing, mas tenho alguns palpites. Contratam-se numerosos profissionais - designers, publicitários, pesquisadores, químicos, engenheiros etc., procede-se a um processo horizontal e vertical de pesquisa de mercado em vários países e a empresa chega, por exemplo, às seguintes conclusões: para que o produto venda mais no Brasil, é preciso que o tubo não tenha uma tampa separada; que a embalagem seja branca; que a campanha seja estrelada por uma modelo famosa; que o produto fique visível juntos aos caixas do supermercado; que tenha um preço mais alto que o dos concorrentes semelhantes, mas não excessivamente alto, para que pareça de mais alta qualidade; que a campanha na televisão aconteça no horário da manhã, quando as donas de casa estão preparando o almoço da família.

Para que ele venda no Japão, por outro lado, as pesquisas demonstram que lá a embalagem deve ser verde, porque é a cor que os japoneses associam à ideia de frescor. E assim por diante.

Todos os produtos que consumimos nos supermercados, nas farmácias, nas lojas de departamentos e em inúmeros outros estabelecimentos passam igualmente por processos vertiginosos e complexos de estratégia de venda.

Mas eis que o livro "Eu Compro, sim! Mas a Culpa é dos Hormônios..." adverte o leitor/consumidor que, caso ele queira consumir menos e eventualmente se curar do "vício da gastança", deve procurar não um psicólogo, um sociólogo ou buscar conhecer melhor a si mesmo e a seus problemas, mas um neurologista, ou ainda um endocrinologista, para tentar equilibrar os hormônios e os níveis de neurotransmissores! Não é surpreendente? Nada de Marx e a alienação do capital, Freud e as fixações e neuroses, nada do estresse das grandes cidades e, afinal, nada dos apelos sedutores do consumo. O problema é hormonal!

Só para se ter uma ideia, o livro começa com a ousada afirmação: "Somos irracionais". Ao menos segundo o cientista Dan Ariely, que pesquisa "o comportamento econômico dos macacos" (sim, você não leu errado), os humanos também cometem "erros econômicos básicos", como "não agir em função do futuro e repetir nossos erros sempre da mesma maneira". Isso, é claro, se deve não a fatores sociológicos e/ou psíquicos passíveis de processamento e transformação pelo sujeito, mas a combinações endocrinológicas que independem do indivíduo.

É de perguntar se o autor do livro não recebe comissão daquela grande indústria citada no começo deste texto ou de muitas outras. Se não recebe (e é evidente que não), eu diria que ele está perdendo uma grande oportunidade, pois está trabalhando a serviço delas. Qualquer estrategista de marketing pouparia várias horas de trabalho e sairia para comemorar se soubesse que a urgência de consumo de seu "público-alvo" (expressão das mais infelizes) é movido por fatores hormonais. Faria um acordo com a indústria de fármacos (a mesma dos alimentícios, por sinal) e inventaria um remédio para curar os consumidores do vício do consumo.

Todos os capítulos trazem dicas resumidas, ao final, para que o leitor preste atenção e evite os apelos fáceis de consumo. No capítulo 7, por exemplo, o autor aconselha a "leitora" para que "fique atenta" à música ambiente de uma loja, porque ela pode fazer que a pessoa compre mais. Pergunta: "atenta"? Por que não "atento"? Os homens não estão submetidos a esse "engodo musical"?

Aconselho o autor a ficar também ele um pouco mais atento. Mas, ao menos no seu caso, não aos hormônios.

"Eu Compro, sim! Mas a Culpa É dos Hormônios...

"Pedro de Camargo. Novo Conceito, 192 págs., R$ 24,90

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* Noemi Jaffe é doutora em literatura brasileira pela USP e autora de "Quando Nada Está Acontecendo" (Martins Editora)
E-mail: noejaffe@gmail.com
Fonte: Valor Econômico on line, 13/09/2013

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