sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Ir ao encontro do que se perde

José Tolentino Mendonça*
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As grandes alterações não se fazem sem custo. A somar a ganhos há sempre perdas, crepúsculos antecipados, parcelas omitidas, ausências e silêncios que depois pesam. Isso parece inevitável. A questão é saber como lidamos com o que se perde. Com que grau de consciência observamos a vida, a nossa e a dos outros. E se nos conformamos ou não com lógicas implacáveis de substituição, ousando, pelo contrário, dinâmicas de reconhecimento e de reintegração, Talvez a utopia mais necessária esteja aí. Talvez a utopia não seja simplesmente uma pergunta feita ao futuro, mas sim uma interrogação sobre o modo como os nossos passados, remotos e próximos, podem ser convocados para um presente que aceite o risco da inteireza como lugar possível da sua reinvenção.
Imaginemos, por um momento, o processo complexo que foi a adaptação das sociedades orais à escrita. Em "Fedro", de Platão, há um curioso debate que o ilustra. O que é tido como o mitológico inventor da escrita, o deus egípcio Theuth, garante ali entusiasticamente que ela tomará os homens mais sábios e lhes desenvolverá a memória O rei Thamus, que o escuta, contraria esse otimismo, defendendo o oposto: que a escrita produzirá esquecimento. Os homens deixarão de exercitar a memória por causa da confiança nos carateres escritos, e não vão eles próprios praticar a lembrança interior. E conclui: «Tomar-se-ão muito informados e terão a aparência de quem sabe de várias coisas, quando na verdade serão ignorantes e de difícil convívio». 

Hoje ninguém duvida dos benefícios da escrita e de que ela constituiu uma alavanca histórica de primeira grandeza. As sociedades orais, contudo, haviam desenvolvido formas de sabedoria, em parte perdidas, que seria importante recuperar. Um exemplo importante tem a ver com a arte de contar. Somos uma sociedade de leitores/recetores mais do que de narradores, e esse desequilíbrio sente-se. A maior parte do conhecimento que produzimos está infelizmente desligado da experiência. O narrador, porém, toma aquilo que narra da experiência e transforma-a em experiência para aqueles que escutam a sua história.

Num dos seus livros, Martin Buber conta esta hístóría inesquecível: «O meu avô estava já paralisado. Um dia pediram-lhe para contar uma história, uma história que ele tivesse vivido com o seu mestre. Então ele contou como esse homem santo que era o seu mestre tinha o costume de saltar e dançar enquanto rezava. E ao contar isto a meu avô levantou-se, e o relato envolveu-o de tal maneira que ele começou a saltar e a dançar para mostrar como o seu mestre fazia. Desde esse instante ficou curado».
Hoje voltamos a habitar uma grande alteração: da escrita passamos para a eletrónica. E não se trata só de tecnologia. Estamos a inaugurar uma nova forma de organização da experiência humana, menos estática do que a escrita, muito mais instantânea, global, acessível, envolvente. Não é por acaso que tem como grande metáfora a rede. Porém, há dimensões importantes que ficam ame­çadas e passamos a ter prova disso no nosso dia a dia. Profetizou McLuhan: «Na era do funcionamento em circuito, as consequências de qualquer ação ocorrem ao mesmo tempo do que esta». 

Uma das coisas que nos arriscamos a perder é, assim, o distanciamento, a margem de tempo e de liberdade tão necessárias à ponderação. A expetativa é de que tudo flua sem pausas. Fala-se muito da urgência de fazer uma gestão eficaz da informação. Urgente, porém, seria reconhecermos que precisamos de tempo e de solidão para dormir sobre os assuntos. Muitas vezes, a almofada é melhor conselheira do que o ecrã.
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* Escritor português. Poeta. Teólogo
Pintura de Paul Klee
Fonte: InExpresso, 10.10.2013

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