sábado, 30 de novembro de 2013

"AVALOVARA", 40 anos depois

 Carlos Felipe Moisés*
 
O poeta é um lavrador? O sentido primitivo se perdeu, 
mas pode ser recuperado.

Osman Lins (1924-1978) deixou um vazio difícil de preencher. Primeiro, o ficcionista admirável de "O Fiel e a Pedra" (1961) ou "Nove Novena" (1966); depois o dramaturgo de "Lisbela e o Prisioneiro" (1964) e outras peças; por fim, o ensaísta combativo, empenhado no engajamento do escritor e na função social da literatura: "Guerra sem Testemunhas - O Escritor, Sua Condição e a Realidade social" (1969).

Para Osman, literatura pode ser entretenimento, mas é também uma das formas mais eficientes e persuasivas de buscar um sentido para a existência, uma razão de ser. "Avalovara", romance publicado 40 anos atrás, cada vez mais atual, é um bom exemplo.

É uma história de amor: os encontros e desencontros de Abel, o protagonista, e suas três mulheres, cada qual a seu tempo, uma em Paris, outra no Recife, a derradeira em São Paulo. As cidades não são meros cenários, fazem parte integrante da trama, espelham as almas das criaturas, que ao mesmo tempo vão sendo formadas no rumo da geografia que percorrem. Para a terceira mulher confluem as experiências anteriores: desembocadouro dos rios que Abel navega, um pouco às cegas, no encalço do amor absoluto.

Mas tal enredo não é oferecido ao leitor na sequência do fio cronológico: a narrativa vai registrando, em capítulos quase sempre breves, retalhos de uma história cujas partes vão-se entrelaçando, como cacos de um vitral, e só aos poucos se dá a conhecer. O leitor, sequioso de saber se eles "se casaram e foram felizes para sempre", precisará refrear um pouco o seu ímpeto e habituar-se às inúmeras digressões às quais Abel e suas amadas se entregam.

E é preciso aceitar também que essa "desordem" narrativa (reflexo do deambular errante dos personagens) não é arbitrária, mas obedece a um plano rigoroso, geométrico. A estrutura do romance segue o itinerário sugerido por um antigo palíndromo inscrito num quadrado e percorrido por uma espiral.

Palíndromo? "Frase ou palavra que se pode ler indiferentemente da esquerda para a direita ou vice-versa" (Houaiss): "radar", "reter", "arara", "Roma é amor" etc. Osman Lins parte de um palíndromo famoso, atribuído a um escravo frígio de Pompeia ("Sator Arepo Tenet Opera Rotas"), as palavras empilhadas uma abaixo da outra, formando um quadrado.

Para completar a figura: uma espiral que, das bordas do quadrado na direção do centro, vai tecendo circunvoluções a cada volta mais cerradas, passando várias vezes pelos miniquadrados onde se alojam as demais letras, oito ao todo. Por isso são oito os "temas" do romance, retomados periodicamente, a cada giro da espiral. Apesar do que o desenho, estático, sugere, a espiral gira ininterruptamente, sem que saibamos de onde parte e para onde caminha - tal como a história de Abel. A simbologia é clara: o fluxo ininterrupto da vida que ao mesmo tempo escoa e milagrosamente permanece - sempre a mesma e sempre outra.

Em tempo: "avalovara" é o nome de um pássaro imaginário - explica o narrador, como explica também a simbologia do quadrado e da espiral. Isso nos permite deter a atenção no sentido da frase latina: "o lavrador mantém com firmeza o arado nos sulcos".

No latim arcaico, o "sulco", ou a "rota" que o arado traça na terra, era também chamado "versus", derivado de "vertere", não no sentido de derramar mas no de voltar, retornar. Só mais tarde é que a mesma palavra, "versus", passa a designar, por analogia, a linha seccionada (ou interrompida, ou "vertida") que forma o poema. O poeta é um lavrador? O sentido primitivo se perdeu, mas pode ser recuperado.

O palíndromo, contido no quadrado e percorrido pela espiral, fornece ao romance não só o seu plano, mas também a ideia essencial que o constitui: a substância poética, a ideia ao mesmo tempo arcaica e atual de que só existe vida em poesia. A analogia não se reduz à origem da palavra "verso".

Assim como o lavrador tira o máximo proveito da terra a ser cultivada, cavando nela sulcos regulares, simétricos e bem medidos, o poeta-escritor mantém o mais estrito controle sobre as trilhas de palavras que vai desenhando no papel. Assim como a terra inculta se beneficia do metódico trabalho do lavrador, podendo então gerar flores e frutos, a terra inexplorada do sonho do escritor-poeta pode ser cultivada com as sementes-palavras criteriosamente escolhidas por ele. Assim como o lavrador não colherá fruto algum, se permitir que o arado saia por aí traçando um caminho qualquer, aleatório, o poeta também não criará poesia caso se limite a exibir sua habilidade com o arado, isto é, caso não seja movido pelo espírito verdadeiramente criador, que lhe permite utilizar a ferramenta para outros fins.

Tal como na ficção, na fábula milenar e no cultivo da terra, ou no quadrado onde se inscrevem o palíndromo e sua espiral, assim também, na realidade cotidiana deste mundo desgovernado em que vivemos, a vida só faz sentido se formos capazes de inventá-lo: ordem e caos, entrelaçados.
Ao escolher o seu palíndromo-matriz - emblema da condição humana -, Osman Lins certamente já o sabia.
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* Carlos Felipe Moisés é poeta ("Noite Nula"), crítico literário ("Tradição & Ruptura") e tradutor ("O Poder do Mito") 
Fonte: Jornal Valor Econômico on line, 29/11/2013

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