sábado, 16 de novembro de 2013

Como nos tornamos civilizados

Michel Aires de Souza*

            O sociólogo Alemão Nobert Elias, em seu livro “O processo civilizador: uma história dos costumes” conseguiu compreender muito bem a ligação que há entre a vida dos indivíduos e as estruturas da sociedade.  Este é um belo livro que todos deveriam ler para saber como nos tornamos civilizados.  Na história da civilização ocidental nem sempre fomos tão amáveis e educados, nem sempre fomos tão comportados e asseados, nem sempre fomos tão dóceis e gentis. Para compreender o que somos temos que compreender o que fomos.  Este foi o objetivo de Elias, compreender como nos tornamos o que somos. Para isso ele procurou compreender a história da nossa vida afetiva, procurou compreender a história dos sentimentos de vergonha, de repugnância, de limpeza, de delicadeza, de desagrado e medo. Em suma ele fez uma história de nossos sentimentos mais profundos. Seu foco de análise foram as interações sociais. Essas interações produzem padrões de comportamentos que passam a fazer partes das estruturas sociais. Essas estruturas, por sua vez, se materializam em representações, hábitos, valores e formas de conduta. A partir disso, foi possível a Elias descrever de forma profunda o processo psíquico civilizador.

        Se pudéssemos nos transportar para a idade média no século XIII ficaríamos impressionados e sentiríamos certa repugnância quanto aos hábitos daquelas pessoas. Para Elias os sentimentos de repugnância, vergonha, desagrado, nojo foram importantes no processo civilizador, uma vez que moldou o nosso comportamento e a estrutura de nossa mente. É por isso que sentimos nojo quando vemos alguém se comportar de modo incivilizado à mesa. Se entrássemos em uma estalagem na idade média veríamos muitos homens à mesa comendo com as mãos, servindo-se todos numa mesma travessa e bebendo vinho num mesmo cálice. Veríamos também alguns assoando o nariz na toalha da mesa e outros com as mãos. Muitos estariam escarrando no chão.  Pode ser que um deles tirasse a bota e colocasse sobre a mesa. Outros estariam soltando gazes sem constrangimento. Ao comer alguns estariam estalando os beiços. Muitos deles estariam conversando com a boca cheia. Veríamos muitos arrotando. Sentiríamos um fedor de alho e cebola no ar.  Esses tipos de comportamentos eram naturais e os indivíduos não sentiam nenhum constrangimento quanto a isso.

          Na história da civilização ocidental as mudanças do comportamento se deram a passos lentos, os processos psíquicos foram mudando gradualmente no curso dos séculos. Elias foi capaz de observar os homens à mesa, na cama, no interior da casa, no campo e na cidade, em conflitos e disputas. Nestas atividades os indivíduos foram mudando lentamente seus sentimentos e atitudes. O que Elias descobriu foi que as mudanças constantes nas estruturas da civilização ocidental mudaram também os padrões de comportamento e a constituição psíquica dos indivíduos.

       Na civilização é natural que todo ser humano sofra influência e seja modelado pelo comportamento dos outros, nenhum ser humano nasce pronto e acabado, somos modelados desde o nosso nascimento. Levando em consideração esse postulado Elias buscou em manuais de etiqueta, livros de comportamento, pinturas e documentos históricos, desde o século XIII, as razões que foram moldando o comportamento humano.

          A ideia de bom comportamento só começou a aparecer na idade média em manuais procedentes das cortes da nobreza guerreira. Nesses manuais se ensinavam boas maneiras à mesa, como lavar as mãos antes da refeição, não roer os ossos a mesa, não limpar o nariz com as mãos, não pigarrear, não falar demais, não limpar os dentes com a faca, não cuspir por cima da mesa, não soltar gazes, não oferecer o resto da sopa a outrem, não se enraivecer, sorrir sempre e ser cortês. O conceito de courtoesie (cortesia) não só expressava a autoconsciência aristocrática, mas também expressava uma mudança na mentalidade e nos sentimentos do homem medieval.   “É assim que as pessoas se comportam na corte. Com esses termos, certos grupos importantes do estrato secular superior, o que não significa a classe de cavaleiros como um todo, mas principalmente os círculos cortesãos que gravitavam em torno dos grandes senhores feudais, designavam o que os distinguia, a seus próprios olhos, isto é, o código específico de comportamento que surgiu nas grandes cortes feudais e, em seguida, se disseminou por estratos mais amplos” (Elias, 1994, p.76).

        Para Elias o que faltava nesse mundo cortês eram as barreiras emocionais que separavam um indivíduo do outro. Não existia ainda o condicionamento dos sentimentos que nos faz ter nojo de qualquer objeto que tenha tocado as mãos ou a boca de outro indivíduo. Esse condicionamento só começa a se desenvolver na renascença onde o embaraço, a vergonha e repugnância começaram a fazer parte das relações sociais. Por esta razão surge no século XVI uma nova sensibilidade que começou a se universalizar e que teve como expressão o conceito de civilité (civilidade).  Este conceito surge com os humanistas e substitui o conceito de (cortesia).

       O principal livro analisado por Elias do período renascentista foi a obra “De civilitate morum puerilium" (Da civilidade em crianças) do humanista Erasmo de Rotterdam, publicado em 1530, tendo mais de 130 edições e que fora publicado ainda no século XVIII. Este pequeno tratado teve como objetivo "a função de cultivar os sentimentos de vergonha". Mas, acima de tudo, é um trabalho de compilação de boas e más maneiras que Erasmo tirou da própria vida social. Neste sentido é a expressão das mudanças de seu próprio tempo.  Como sabemos no século XVI houve uma grande transformação na sociedade. Os valores do individualismo passaram a ser preponderantes e o comportamento e as boas maneiras ganharam grande notoriedade, de tal modo que, mesmo pessoas de grande talento e renome não eram capazes de ignorá-las.  “O tratado de Erasmo surge numa época de reagrupamento social. É a expressão de um frutífero período de transição após o afrouxamento da hierarquia social medieval e antes da estabilização da moderna. Pertence a uma fase em que a velha nobreza de cavaleiros feudais estava ainda em declínio, enquanto se encontrava em formação a nova aristocracia das cortes absolutistas” (Elias, 1994, p. 85).

        No livro de Erasmo são ensinadas regras de como se comportar a mesa, como se sentar, como cumprimentar, como se vestir, que cuidado devemos ter com os gestos ou com o olhar.   É um manual para a educação de crianças e foi escrito para um menino nobre, filho de príncipe. O pequeno tratado fala de atitudes que perdemos e que aos nossos olhos são entendidos como “bárbaros” ou “incivilizados”. Um dos seus ensinamentos dizia que “não deve haver meleca nas narinas (...). O camponês enxuga o nariz no boné ou no casaco e o fabricante de salsichas no braço ou no cotovelo. Ninguém demonstra decoro usando a mão e, em seguida, enxuga-a na roupa. É mais decente pegar o catarro em um pano, preferivelmente se afastando dos circundantes. Se, quando o indivíduo se assoa com dois dedos alguma coisa cai no chão, ele deve pisá-la imediatamente com o pé. O mesmo se aplica ao escarro” (Idem Ibidem, p. 69-70).

       Muitos dos comportamentos descritos no tratado de Erasmo são parecidos com os nossos, mas outros são muito diferentes. Apesar de representar um avanço nas formas de lhe dar com o corpo, com a limpeza e com as boas maneiras, são ainda formas rudimentares de comportamentos se comparados aos do homem contemporâneo.  O tratado aconselha, por exemplo, que não devemos pegar a carne com cinco dedos, mas apenas com três dedos. Este é um sinal de distinção que separa a classe nobre da classe baixa. Mesmo não existindo sabonete, aconselhava-se a lavar as mãos antes das refeições. A água usada geralmente era perfumada com camomila. Quando os dedos ficavam engordurados aconselhava-se não lambê-los ou enxugá-los no casaco, mas sim num pano qualquer. Também aconselhava que não devemos  dar a carne que estamos comendo ao outro, pois é falta de decoro oferecer carne mastigada a quem se gosta. O manual também dizia que não era educado expor as partes íntimas. Algo bastante comum naquela época.

        Com esse tratado Erasmo mostrou as mudanças que estavam acontecendo em sua época, ele delimitou as formas de comportamento e as situações sociais e de convívio que estavam adquirindo sentido e significado e que se generalizaria como expressão do mundo moderno.  Apesar de nossa visão etnocêntrica, que nos leva a pensar que aqueles hábitos eram primitivos, Elias argumenta que o comportamento dos medievais eram naturais e socialmente aceitáveis. Não existia o sentimento de repugnância. O sentimento de nojo, repugnância ou vergonha não são sentimentos naturais, mas foram construídos socialmente, são típicos do homem moderno civilizado. Na época de Erasmo todos comiam com as mãos, mesmo o rei e a rainha. Todos bebiam em canecas comuns.  Praticamente não existiam garfos e quando havia eram para tirar carnes das travessas. Elias mostra-nos que foi somente no século XVI que o garfo surgiu para tirar alimentos dos recipientes.  O garfo era ainda artigo de luxo da classe alta no século XVII. Também quase não existem pratos.  As pessoas usavam colheres e facas em comum. Quando a carne chegava à mesa cada pessoa pegava-a com as mãos. Os dedos eram frequentemente enfiados no caldo da travessa para molhar o pão. Os indivíduos também assoavam o nariz com as mãos, da mesma forma que comiam com elas. A sensação de nojo que experimentamos hoje, nem sequer existia naquela época.

             O homem medieval também não tinha nenhum pudor quanto à nudez de seu corpo. Ficar nu na frente dos outros era algo natural.  Por esta razão o tratado de Erasmo aconselhava-se a não expor as partes intimas. Esse conselho começa a surgir em vários manuais a partir do século XVI.  Elias cita um observador daquela época que diz “ver o pai, nada mais usando que calções, acompanhada da esposa e dos filhos nus, correr pelas ruas, de sua casa para os banhos. Quantas vezes vi mocinhas de dez, doze, quatorze, dezesseis e dezoito anos inteiramente nuas, exceto por uma bata curta, muitas vezes rasgada, e um trajo de banho esmolambado, na frente e atrás! Com isto aberto aos pés e as mãos decorosamente às costas, correndo de suas casas ao meio-dia pelas longas ruas em direção aos banhos. E quantos corpos nus de rapazes de dez, doze, quatorze e dezesseis anos correndo ao lado delas". (idem, ibidem, p. 165). O pudor só começa a surgir no século XVI, e somente se torna um sentimento internalizado a partir do século XVII. Antes disso não existia o sentimento de vergonha do corpo e das partes íntimas expostas. Na verdade a exposição do corpo era uma “regra diária” que perdurou até o final da idade média. As pessoas geralmente dormiam nuas e andavam sem roupa em casa e em seu entorno. A camisola só apareceu no século XVI na mesma época em que surgiu o garfo, o lenço e outros objetos da vida civilizada.

        Outro fato que espanta o homem contemporâneo é a estrema agressividade da época medieval. A pilhagem, a guerra, as vinganças, os estupros, a caça de homens e animais eram “necessidade vitais” da estrutura social. Atacar igrejas, atacar peregrinos, atacar oprimidos, viúvas e órfãos, mutilar inocentes eram acontecimentos diários, geralmente praticados pela classe guerreira. Não existiam instituições que pudessem impedir as atrocidades, não existia poder social punitivo. Viver naquela época era se sentir constantemente inseguro. Elias conta-nos a história de um cavaleiro que sentia prazer em mutilar pessoas. Em um único mosteiro ele cortou as mãos de 150 homens e mulheres e arrancou seus olhos. Sua esposa o ajudou e foi capaz de arrancar as unhas  das mulheres e cortar seus seios. Contudo, ninguém estava seguro, nem mesmo os algozes.  O medo e a insegurança eram sentimentos comuns em todo mundo. “O vitorioso de hoje era derrotado amanhã por algum acidente, capturado e sua vida corria perigo. No meio dessas perpétuas ascensões e quedas, dessa alternância de caçadas humanas (...) pouco podia ser previsto. O futuro era relativamente incerto mesmo para os que haviam fugido do mundo. Só Deus e a lealdade de algumas pessoas tinham alguma permanência. O medo reinava em toda parte e o indivíduo tinha que estar sempre em guarda” (idem ibidem, p. 193)

          O que estava acontecendo na época de Erasmo era uma tendência cada vez maior das pessoas se observarem, de se moldarem umas as outras, de fazerem pressão reciprocamente umas sobre as outras. O indivíduo passa a controlar mais seu comportamento, a coação é muito maior do que na época das cortes medievais. As boas maneiras começam a se tornarem exigências do convívio social. Se Erasmo se dedicou a escrever um livro de boas maneiras foi porque o bom comportamento tinha se tornado importante naquela época. E tinha se tornado importante justamente porque surgia uma nova aristocracia: as cortes absolutistas. “Exatamente por esta razão, a questão de bom comportamento uniforme torna-se cada vez mais candente, especialmente porque a estrutura alterada da nova classe alta expõe cada indivíduo de seus membros, em uma extensão sem precedentes, às pressões dos demais e do controle social (...). Forçados a viver de uma nova maneira em sociedade, as pessoas tornam-se mais sensíveis às pressões das outras. Não bruscamente, mas bem devagar, o código de comportamento torna-se mais rigoroso e aumenta o grau de consideração esperado dos demais. O senso do que fazer e não fazer para não ofender ou chocar os outros se torna mais sutil e, em conjunto com as novas relações de poder, o imperativo social de não ofender os semelhantes torna-se mais estrito, em comparação com a fase precedente” (Idem Ibidem, p. 91)

          No tratado de Erasmo já havia uma preocupação com o  controle das emoções e dos impulsos agressivos. O indivíduo civilizado devia ser dócil e amável com todos. Não devia dizer nada que pudesse provocar conflito ou irritar. Além disso, aconselhava-se que devemos ser tolerantes com as ofensas dos demais. Se um companheiro não se comporta bem, devemos aceitar, uma vez que ele deve compensar a rusticidade de seu comportamento com outros talentos. Da mesma forma aconselhava o diálogo com quem nos ofende.

       Elias analisou grande parte dos manuais produzidos até o século XVIII, como livros, tratados ou panfletos sobre civilidade. O que ele percebeu foi que nessa época esses manuais já se dirigiam claramente a moradores de pequenas cidades das províncias. As formas de comportamento ensinadas nesses manuais surgem na classe aristocrática e posteriormente se generalizam por toda sociedade. Na medida em que se popularizam demonstram com grande clareza a disseminação dos costumes, de cima para baixo. Isso significa que nossos hábitos civilizados como comer com garfo, colher e faca e ter boas maneiras assim como nossos valores morais provem da nobreza, disseminada pela burguesia.

      Outra descoberta de Elias foi que esses rituais de bom comportamento não surgiram por causa do nosso medo de contrair doenças, mas surgiram do nosso sentimento de repugnância. Foi uma mudança nos nossos impulsos e emoções. Os sentimentos de nojo se tornaram institucionalizados. O desagrado, a antipatia, a repugnância, o medo ou a vergonha foram alimentados e reproduzidos tornando-se ritualizados.   “O novo padrão não surge da noite para o dia. Algumas formas de comportamento são proibidas não porque sejam anti-higiênicas, mas porque são feias à vista e geram associações desagradáveis. A vergonha de dar esse espetáculo, antes ausente, e o medo de provocar tais associações, difunde-se gradualmente dos círculos que estabelecem o padrão para outros mais amplos, através de numerosas autoridades e instituições” (Idem Ibidem, p.134).

          As boas maneiras começaram a surgir nas cortes dos senhores feudais e se expressava pela palavra cortesia. Mas ainda durante a idade média a palavra não se limitava apenas a corte, uma vez que a burguesia em ascensão também se apropriava dela. Com a queda da nobreza guerreira e dos senhores feudais e com a formação de uma nova aristocracia dos monarcas absolutistas, o conceito de civilidade ganhou preponderância como forma de comportamento em vigor. Foi através do conceito de civilidade que surgiram grande parte dos hábitos do homem civilizado, como comer com garfo, faca e colher. Contudo, de maneira análoga o conceito de civilidade começou a perder sentido no século XVIII, uma vez que a burguesia estava se afirmando como classe dominante. A corte cada vez mais sofria influências dos valores burgueses. O conceito de civilidade começa a diminuir e outros conceitos ganham mais valor como politesse, humanité.  A partir disso surge uma nova autoconsciência. Nessa época os padrões de comportamento já eram bastante divulgados e muitos deles haviam sido internalizados.  “O conceito de civilização indica com clareza, em seu uso no século XIX, que o processo de civilização – ou, em termos mais rigorosos, uma fase desse processo – fora completado e esquecido. As pessoas querem apenas que esse processo se realize em outras nações, e também, durante um período, nas classes mais baixas de sua própria sociedade. Para classe alta e média da sociedade, civilização parece firmemente enraizada. Querem acima de tudo, difundi-la e, no máximo, ampliá-la dentro do padrão já conhecido” (Idem Ibidem, p.113)

      Os manuais de boas maneiras, analisados por Elias, serviram como um instrumento para se entender, em cada época, os padrões de hábitos e comportamentos a que a sociedade procurou acostumar os indivíduos. Significa dizer que cada época condicionou e modelou os indivíduos tentando dissuadi-los a não se comportarem de certa maneira, mas sim de acordo com os hábitos, regras e tabus vigentes. Nesse sentido ele conseguiu compreender como os homens abandonaram seus impulsos naturais incivilizados e os transformaram em comportamentos civilizados.

 Bibliografia
 http://filosofonet.files.wordpress.com/2013/11/elias.jpg
 ELIAS, Nobert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Vol 1. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1994.
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*  Professor.
Fonte: http://filosofonet.wordpress.com/2013/11/16/como-nos-tornamos-civilizados/

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