segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Maior legado de Lessing são as perguntas que ela deixa

NOEMI JAFFE*
 
Penúltima obra da escritora reflete sobre o feminino 
no mito da criação

"11 de Setembro não foi uma coisa assim tão extraordinária" e "Cristo!", talvez sejam as duas frases mais conhecidas pronunciadas pela britânica Doris Lessing. 

A primeira não precisa de contextualização. A segunda foi dita assim que ela soube ter ganhado o Nobel de Literatura, em 2007. Descia do táxi, aparentemente vindo do supermercado; carregava compras e, ao saber da notícia, além de dizer o famoso "Cristo!", ainda se preocupou em pagar o motorista. 

Os jornalistas imploravam por cinco minutos, que ela, reticentemente, reduziu para um. "Esses suecos não têm tradição literária, não têm nada para fazer, então ficam distribuindo prêmios", disse. 

Pode-se questionar a literatura de Lessing, especialmente pela variedade de gêneros que ela contempla, em mais de 50 livros; pode-se discordar das declarações controversas. Mas dificilmente alguém poderá criticar a autenticidade com que ela falava, dava entrevistas e, principalmente, escrevia. 

Isso não é pouco, quando tantos ganhadores de Nobel soam como uma máquina de repetir respostas. Se não bastasse, há grandes livros em sua obra inclassificável. 

Muitos consideram sua obra como pioneira de certo feminismo e de discursos anti-racistas, principalmente com seus primeiros dois sucessos: "A Canção da Relva" e "O Carnê Dourado". Ela recusava esse rótulo. 

Outros a consideram mestre da ficção científica, por causa da série "Canopus". Ela disse mal saber que escrevia algo do gênero. Ainda outros a chamam de guru sufista, o que ela igualmente negava.
Odiava a mãe, que a obrigou, vivendo na África --onde passou a infância-- a uma vida regrada e protegida. 

Foi proibida de voltar ao Zimbábue, em função de sua militância contra o apartheid. Também não tinha muita certeza sobre sua própria competência como mãe. 

Como se percebe, não se encantava facilmente com quase nada. A inocência passava longe, tanto da pessoa quanto da sua obra. 

Seu penúltimo livro, "A Fenda", é um espécie de fábula pré-histórica contada por um historiador romano. Uma mitologia em que, num mundo dominado por mulheres, um homem teria, inesperadamente, nascido de uma fenda nas rochas. 

E se nossos mitos de criação tivessem origem feminina? E se o mundo ocidental não fosse uma continuação do mundo dos romanos? 

Morta ontem, Doris Lessing não pode mais responder. Mas, como essas, deixou muitas outras perguntas. É o melhor que alguém pode deixar. 
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