sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Grossman escreve "com os olhos dos outros"

 
Desde que se tornou mais abrangente, com homenagens à produção literária de países do mundo todo e não só de latino-americanos, a Feira Internacional do Livro de Guadalajara, no México, tem buscado criar pontes com literaturas eminentes, próximas ou distantes do universo hispânico. Na 27ª edição, encerrada no domingo, a honra recaiu sobre Israel, nação ao mesmo tempo jovem e ancestral, representada no evento por grandes escritores, como David Grossman, autor de "Fora do Tempo" (Companhia das Letras). O autor de romances, ensaios e livros infantis conversou com o Valor sobre literatura israelense e o desafio de promover a paz por meio da ficção, tratando de "ver com os olhos do outro".

Valor: Para onde o futuro da literatura israelense aponta?
David Grossman: É difícil prever o futuro do próprio país, que dirá da literatura israelense. Mas hoje convivem seis gerações de escritores na nossa arena literária, todas bastante ativas. Há muitos jovens escrevendo, talvez mais interessados em olhar para o resto do mundo e lançar-se nele do que as gerações anteriores. A minha, por exemplo, prefere lidar com a realidade imediata. A meu ver, nossa situação extrema gera muitas manifestações artísticas. Não é só a literatura que pulsa em Israel, mas também o teatro e o cinema. Retratar essa realidade é algo maravilhoso, viver nela não é.

Valor: O que caracteriza essa situação?
Grossman: Sem dúvida, é o esforço de manter uma nação. Israel é historicamente o lugar de origem dos judeus. Fomos expulsos daí no primeiro século depois de Cristo e, desde então, em todo o mundo é possível encontrar judeus. Cada um continua a desejar que esse lugar continue existindo. E não só isso: para os judeus, aspirar a voltar a essa terra é parte básica de sua identidade. Então, a partir do fim do século XIX, os sionistas passaram a atuar com o objetivo de devolver essas pessoas à sua origem e criar um país. São quase 1.800 anos durante os quais fomos perseguidos e assassinados. O objetivo de criar um Estado israelense é que ele sirva de lugar para proteger os judeus, depois que o mundo falhou nisso. Essa ideia me parece não só inspiradora, mas nobre e necessária. O fato é que, assim como fomos expulsos, outros povos começaram a criar sua vida nessa área, e o movimento sionista ignorou isso. Nos tempos atuais, existem dois povos ocupando a mesma terra, e é claro que ninguém sugere que um deles vá embora. Buscamos uma situação política que nos permita levar uma vida normal.

Valor: Qual é sua visão sobre a posição israelense, como escritor e cidadão?
Grossman: Não busco a justiça total, só as pessoas fanáticas o fazem. Uma solução absoluta significaria que um dos dois povos deixasse de viver na região, e pedir isso é impossível. O que é possível é uma justiça que será dolorosa para ambos os lados. Estamos vivendo uma vida paralela àquela que merecemos. Busco uma saída de tamanho humano, e o principal obstáculo a superar é o medo. Estamos traumatizados por tantas guerras. Se você analisar estatísticas relacionadas ao Oriente Médio, fica clara a tensão. São cerca de 60 milhões de judeus vivendo ao lado de 300 milhões de muçulmanos que não querem que estejamos aí e nos dizem isso abertamente. Dá para imaginar o que eles fariam conosco se tivessem chance. Acredito que Israel tem que poder se defender e ter um exército forte, mas isso não é suficiente. É só um lado dessa defesa; o outro é a paz. Precisamos lutar para consegui-la em ambas as sociedades, a israelense e a palestina, depois na Jordânia e em outros países envolvidos, porque a vida só será possível se existir paz. Hoje, investe-se muito na guerra. Há poucos agentes de diálogo. É preciso criá-los, porque, do contrário, continuaremos paralisados.

Valor: Nesse cenário de paralisia, de que maneira a literatura é capaz de estabelecer pontes entre Israel e a Palestina?
Grossman: Creio que, em situações de congelamento, de restrição das liberdades, as pessoas ficam presas, e a arte é que cria espaço de manobra e permite que elas sejam flexíveis e se reinventem. O bom de escrever, para mim, é tentar ver a realidade com os olhos do outro. Nem sempre temos energia para abandonar nossas posições e experimentar outros pontos de vista. Quando escrevo com os olhos do meu inimigo - e, infelizmente, neste momento israelenses e palestinos são inimigos -, sinto que por um momento consigo o privilégio de olhar para mim de outra maneira. É sempre o inimigo que enxerga coisas que preferimos não saber de nós e experimenta nossa brutalidade. Só quando você se olha através dos olhos dele é que percebe quem é.
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Reportagem Por Camila Moraes | De Guadalajara
Fonte: Valor Econômico online, 13/12/2013
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