segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Pensamento social, filosofia e modernidade

 Paulo Ghiraldelli*
 
-  Cioran -

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Considerando o que Durkheim e Weber disseram da modernidade, e levando em conta a questão da sensibilidade, o diagnóstico não parece ser promissor. Uma ética profissional, como Durkheim propugnou para a modernidade, seria o campo ideal para as pessoas serem sensíveis? Por tudo que nós passamos no trabalho profissional, mesmo considerando aqueles que estão “em sua vocação”, seja lá o que for isso, é difícil responder positivamente a essa pergunta. Viver com o coração livre, porém à beira de um abismo vazio, seria a fórmula melhor para, enquanto modernos, sermos sensíveis? Weber colocou essa alternativa e, ele mesmo, considerou-a inóspita.

Mas, se é assim, então nós, já há muito tempo pessoas modernas, como ainda falamos em sensibilidade? Ou estamos apenas falando de uma palavra vazia, sem qualquer correspondência em atitudes? Talvez sejamos todos zumbis elegantes, andando pelas ruas sem qualquer indício da horrível aparência descarnada, mas efetivamente zumbis. Abrimos o dicionário e lá encontramos uma dúzia de possibilidades. Elas começam pelo ser vivo e pelo homem e terminam pela máquina. O homem sensível tem a ver com sensação e sentimento. A máquina tem a ver com sensibilidade em termos de quantidade do que a afeta, luz, por exemplo. A modernidade parece deixar os dicionários ainda com a palavra sensibilidade funcionando, mas de um modo puramente quantitativo. Alguém sensível seria, então, se plenamente moderno, alguém afetável por algo externo ou interno, mas de uma forma a jamais ter no horizonte aquilo que seria, em filosofia, o desespero de Cioran, por exemplo.

Cioran soube dizer em que ponto nós teríamos de cortar as doze possibilidades do termo “sensibilidade” no nosso dicionário. Isso porque ele talvez tenha sido um daqueles últimos homens sensíveis. Alguém que soube, com sinceridade, dizer coisas como “ao notar a miséria, envergonho-me até de existir a música”. Não nego que outros homens foram sensíveis assim. Adorno disse tudo sobre isso quando afirmou que não poderia haver poesia após Auschwitz. Mas, diante do diagnóstico da modernidade feito pelos clássicos da sociologia, que é um seu retrato cuidadoso, tenho de admitir a excepcionalidade de pessoas capazes de saberem exatamente o que é ter e sentir esse pensamento de Cioran, sobre a vergonha da existência da música, ou o de Adorno, sobre a inibição da arte após a barbárie. Arte é gênio e gozo. Quem poderia gozar sem culpa ou sem desrespeito após termos a miséria e a barbárie?

No diagnóstico da modernidade, ou pelo profissionalismo ou por uma subjetivação específica, acabamos por realizar aquele ideal de Sade, que ele nunca achou que seria possível de ser alcançado, e que Adorno chamou de “a feliz apatia”. O que é uma feliz apatia: é a felicidade que não se sente. É a tristeza que não se sente. Pois tudo está diante do império da apatia, o a-pathos. Tudo toca sem tocar o homem. O mais atroz sofrimento não toca o outro. A mais exuberante felicidade é falsa. O que é pior que o tédio vampiriza o mundo.

O problema disso tudo é que a modernidade nos fez pessoas insensíveis e, no entanto, não nos tornou pedras. Ninguém é “frio como uma pedra”. No entanto, todos nós somos insensíveis naquele sentido que Sade queria que fôssemos para sermos senhores de si mesmos e do mundo.

Se a minha sensibilidade está restrita ao meu fazer profissional e ao meu coração aparentemente cheio, mas, na verdade, vazio e solitário, ou vazio porque solitário, como que a palavra sensibilidade ainda está nos dicionários? Posso ser bombardeado por pornografia e por imagens sublimes e por mil dados computacionais ao mesmo tempo. Posso! Posso, mas por ser seletivo ou por ser efetivamente insensível? Essas duas coisas, na modernidade, não vieram juntas? Não sou um bom técnico que tudo aprende à medida que sou um sensível insensível?

Haveria uma teoria filosófica que pudesse descrever o homem como aberto à modernidade e, então, crescentemente insensível, mas ao mesmo tempo tendo algum germe de sensibilidade, para que, então, ainda pudéssemos nos descrever como homens e não como zumbis? É aí que entra a descrição feita por Peter Sloterdijk. Mas isso é assunto para outro dia.
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*  Filósofo. O texto completo pode ser lido aqui: http://ghiraldelli.pro.br/pensamento-social-filosofia-e-modernidade/15/12/2013
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