domingo, 8 de dezembro de 2013

SABEDORIA DE CRIANÇA

 Rubem Alves*
Aos 5 anos a Raquel já havia descoberto a morte. Era bem cedo. Ela veio à minha cama, me acordou e me perguntou:

“— Papai, quando você morrer você vai sentir saudade?”

Levei um susto. Eu não estava preparado para esta pergunta. Fiquei mudo, sem saber o que dizer. Mas ela, aos 5 anos de idade, já sabia, sem que ninguém lhe houvesse ensinado, que a morte é o lugar onde a saudade mora. Aí, vendo o meu embaraço, ela disse:

“— Não fique triste. Eu vou abraçar você...”

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Explicando o gesto litúrgico católico: “É assim: ‘Em nome do Pai, do Filho e do Silvio Santos...”

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Comentando uma planta novinha: “Quando ela ficar plantuda...”

Observação linguística:

“— Canteiro é uma palavra errada. Canteiro é lugar de canto. Lugar de planta é planteiro...” Essas duas observações me fizeram pensar que as crianças, sem que ninguém as ensine, têm um pouco de Manoel de Barros dentro delas, habilidade que vai sendo perdida quando, nas escolas, a língua é ensinada conforme a gramática e o dicionário.

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Se você nunca leu o Manoel de Barros, vão aí umas amostras:

“O que eu queria era fazer coisas desúteis...”

“A arte de infantilizar formigas...”

“Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber...”

“Grilo é um ser imprestável para o silêncio...”

“Besouros não trepam no abstrato...”

“O livro está de cabeça para baixo. Estou deslendo...”

“Prefiro as linhas tortas, como Deus...”

“O despropósito é mais saudável que o solene. Para limpar as palavras de alguma solenidade eu uso bosta...”

“Eu queria... chegar ao acriançamento das palavras...”

“Os delírios verbais me terapeutam...”

“Aliás, o cu de uma formiga é também muito mais importante que uma Usina Nuclear...”

“Também as latrinas desprezadas que servem para ter grilos dentro — elas podem um dia milagrar violetas...”

“Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam a Deus...”

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Depois de ver o filme ET a Raquel chorou muito. Depois pediu para ir logo para a cama para parar de chorar. No dia seguinte, hora do jantar, pede para ir ao jardim, ver a estrelinha do ET. Mas estava nublado. Resolvi brincar e disse que o ET estava atrás de uma moita de arbustos. “Deixa de ser bobo, papai. O ET não existe...”, ela disse. “Mas ontem você chorou por ele. Por que é que você chorou por uma coisa que não existe?”

“— Por isso mesmo. Chorei porque ele não existe. Eu gostaria que ele existisse. Mas ele existe só na terra da fantasia...”

O que me fez lembrar um poema de Fernando Pessoa:

“O que me dói não é o que há no coração, mas essas coisas lindas que nunca existirão... São as formas sem forma que passam sem que a dor as possa conhecer ou as sonhar o amor. São como se a tristeza fosse árvore e, uma a uma, caíssem suas folhas entre o vestígio e a bruma.”

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Apresentando uma tia já bem velha a uma nova amiguinha:

“— Esta é a minha tia Maria que ainda não morreu...”

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“— Há pipis de três tipos: os curtinhos, como o meu; os compridinhos como os dos meninos; e os com pelinhos...”

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A visita estava se arrastando. A Raquel sai da sala, vai até a cozinha, volta e diz:

“— O relógio me disse que já é hora de vocês irem embora...” Essa honestíssima intervenção da Raquel nos obrigou a rir e a improvisar um lanche.

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A Raquel conta uma mentira para a professora de fono. A professora, diplomata, contra-ataca contando a estória do Pinóquio, sua mentira e o seu nariz. Como boa educadora pede que a Raquel tire as conclusões. “Foi muito bom para o Pinóquio. Com aquele narigão ele podia cheirar melhor que as outras crianças...”

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Explicando ao irmão os túmulos verticais no cemitério:

“— Aqui ficam as pessoas que são enterradas de pé...”

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Na saída da igreja encontra-se com um moço conhecido, amigo:

“— Raquel, eu te vi a semana passada, só que não me lembro onde...”

“— Não se lembra? Foi no médico...” Conversa vai, conversa vem...

“— Você está tão grande. Quantos anos?”

“— Seis”.

“— Quem diria! E eu me lembro quando você nasceu...”

“— Você não se lembra nem das coisas que aconteceram na semana passada e vem me dizer que se lembra de coisas que aconteceram seis anos atrás?”

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Campos do Jordão, olhando para as montanhas: “Por que as coisas são coisas? Elas não ficam tristes por serem coisas?” Lembrei-me de um outro poema de Fernando Pessoa: “Tenho dó das estrelas, luzindo há tanto tempo... Não haverá um cansaço das coisas, de todas as coisas, como das pernas ou de um braço? Um cansaço de existir, de ser...”

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Rezando antes da ceia de Natal “...e meu Deus, eu desejo que você tenha um feliz nascimento amanhã...”
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* Educador. Filósofo. Teólogo. Escritor.
Fonte: Correio Popular online, 08/12/2013
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