sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

A IDADE IDEAL

 Carlos Felipe Moisés*
Historinha antiga (os avós dos seus avós já a conheciam), mas instrutiva, é a do sujeito que trocou a mulher de 40 por duas de 20. Quando teve a oportunidade, você não quis arriscar. Agora está arrependido? Pensando em trocá-la por três de 20? Esqueça! Você mal daria conta da primeira. E a segunda, se ainda estiver por perto, logo se oferecerá para ajudá-lo a atravessar a rua. O que mais você atravessaria ao lado da esplêndida jovem, que podia ser (desculpe-me o clichê, mas a aritmética é implacável) sua neta?

E a terceira? Pois é, você ainda tem direito a mais uma de 20... A terceira só entra na história em razão da aritmética. Quem poria quem ao colo, para acalentar com carinho e respeito? Bobagem! Mas a historinha é de fato instrutiva, esconde nas cavernas onde veio sendo forjada, ao longo dos séculos, muito daquilo que a nossa sociedade, ao mesmo tempo, ambiciona e abomina.

Trocar uma de 40 por duas de 20 é considerar a mulher como mercadoria, da qual o homem pode dispor como bem entenda: vender, trocar, alugar, terceirizar, usar à vontade, até que ela não sirva para mais nada. Mercadoria, propriedade... Valor de troca ou de mercado? De mercado, claro! Incapaz de avaliar a mulher que a sorte ou o azar pôs do seu lado (você delira ou entra em pânico diante de quase todas, não é verdade?), você parte para a quantidade. Seu negócio não é mulher, mas mulheres, em expansão aritmética.

Ainda se fosse para sua satisfação pessoal... Mas é só para exibir ao mundo o poder de fogo do seu patrimônio sempre crescente. Não é por você que você troca uma de 40 por duas de 20, é pelos outros. Seu modelo (modelo recente, a história é mais antiga) é o pistoleiro do Velho Oeste, que vai marcando no cano do revólver, com o canivete, um a um, os desafetos que despacha para o Além... para depois exibi-lo aos frequentadores do Saloon. Todos ali, pistolas à mostra, felizes da vida, embora um pouco assustados. A única mulher presente é a corista rebolando no tablado, oferecida.

Você nunca ouviu, nunca ninguém ouviu falar da mulher que trocou o seu homem de 50 por dois de 25. (Não seria justo, aritmeticamente correto?) Ela troca por um só. A razão, se você não sabe desconfia: ela não liga para quantidade, não anda de pistola pendurada na cintura e não quer saber de marcas a exibir no Cabeleireiro ou no Chá das Cinco. Ela prefere esconder as marcas. Seu único propósito é amar e ser amada, e tanto faz um de 25 ou de 50. É só escolher entre a suposta experiência e a alardeada volúpia. Doce indecisão, não é mesmo? É como a do técnico que conta com dois supercraques para cada posição.

Dois de 25? A mulher nem pensa nisso. Ela sabe que, se for capaz de retribuir, um só chega. Afinal, "trocar a mulher de 40 por duas de 20" não passa de ato falho - secular, arquetípico, revelador dos nossos medos e fantasmas. O medo de morrer, o fantasma do envelhecimento... E dá para explicar, caso não o incomode recorrer à ajuda de um escritor antigo. A literatura pode ajudar.

O livro se chama "Carta de Guia de Casados", foi publicado em 1651 e trata de vários temas relativos à vida conjugal, entre os quais o nosso: a idade ideal. No caso, a dos amantes em busca da felicidade. É um dos pioneiros dos livros de autoajuda, que hoje infestam as prateleiras das nossas bibliotecas e livrarias. (Como você vê, aliás, nem sempre as inovações trazem realmente algo de novo.) O autor? Um nobre, solteirão e mulherengo, d. Francisco Manuel de Melo, que vai direto ao ponto.

Segundo ele, existem apenas três espécies de casamento: o de Deus, o do diabo e o da morte. Com a palavra o fidalgo: "De Deus, o do mancebo com a moça; do diabo, o da velha com o mancebo; da morte, o da moça com o velho". Em seguida ele explica: "Os casados moços podem viver com alegria; as velhas casadas com moços vivem em perpétua discórdia; os velhos casados com as moças apressam a morte, ora pelas desconfianças, ora pelas demasias".

Não vem diretamente daí a ideia de trocar a mulher de 40 por duas de 20 (no tempo de d. Francisco o mercantilismo ainda estava em expansão), mas podemos dizer que é um corolário, pelo caminho mais torto possível.

Digamos que, tocado pelo sábio conselho, você tenha feito como a maioria e se casou "mancebo", com uma "moça". Passados alguns anos, você envelheceu, tanto quanto ela, embora só repare no envelhecimento dela. É nesse momento que lhe ocorre trocá-la por duas de 20. Para quê? Para se certificar e provar ao mundo: envelhecer não é com você, é só com ela. Ou com os outros. Então (d. Francisco bem que avisou) você apressa a morte.

Já sei: você está querendo dizer que d. Francisco Manuel de Melo se enganou. Não são apenas três, mas quatro, as espécies de casamento. Faltou incluir o do velho com a velha. Mas, guardadas as proporções, não seria igualzinho ao da moça com o mancebo? Está bem, está bem: d. Francisco se enganou, mas não se enganou. É tudo literatura, não é verdade?
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* Carlos Felipe Moisés é poeta ("Noite Nula"), crítico literário ("Tradição & Ruptura") e tradutor ("O Poder do Mito") 
Fonte: Valor Econômico online, 07/02/2014

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