segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Para sociólogo Domenico De Masi, liberdade para criar é o que promove a felicidade em qualquer profissão

 Para sociólogo Domenico De Masi, liberdade para criar é o que promove a felicidade em qualquer profissão Uniasselvi,Divulgação/divulgação
 Estudioso italiano acredita que trabalhos criativos não devem ser controlados, pois desmotiva o funcionário

De seu escritório em Roma, Domenico De Masi, 75 anos, sociólogo, professor, palestrante e escritor, falou sobre o lançamento de O Futuro Chegou. A obra inspirada no Brasil aterrissou nas livrarias no último dia 12. No livro, De Masi afirma que a humanidade deve elaborar um novo modelo social baseado na cultura brasileira. Durante a entrevista, também adiantou tópicos de sua conferência magna, Felicidade no Trabalho: Um Desafio Possível?, que será realizada no Encontro Sul-Americano de Recursos Humanos, de 19 a 21 de maio no Centro de Eventos da UFRGS em Gramado.

Seu novo livro propõe a busca de valores na história de 15 sociedades precedentes para construir um modelo de vida pós-industrial que "poderá ser feliz". Como deve ser esse modelo?
Domenico De Masi -
A ideia para escrever esse livro surgiu quando fui convidado para ministrar um seminário aos 30 gerentes mais importantes da Rede Globo. Roberto Irineu Marinho os reuniu em sua fazenda em Minas Gerais e me chamou para palestrar. Eles me pediram para falar sobre a situação de várias realidades sociais do mundo naquele momento. Durante os três dias do seminário, me dei conta de que não existia um livro que comparasse os vários modelos de vida já experimentados no mundo e resolvi escrevê-lo.

A quais conclusões o senhor chegou?
De Masi -
Hoje somos muito confusos e desorientados. Está difícil diferenciar o belo do feio, o falso do verdadeiro, o que é Estado e mercado, sacro e profano, até o que é homem e o que é mulher. Ruíram todos os vínculos e distinções - e isto cria uma situação de crise. Quando estamos em crise, não somos capazes de projetar o futuro, o que gera ainda mais crise. Esta é a primeira sociedade no curso da história que nasceu sem um projeto. Todas as sociedades precedentes nasceram a partir de um projeto.

O senhor pode dar um exemplo?
De Masi -
Roma nasceu depois da elaboração cristã pelos pais da Igreja e a elaboração do Evangelho. A atividade muçulmana também nasceu depois do Alcorão, da doutrina islâmica. Já a nossa sociedade pós-industrial se criou sem um modelo ao qual se referir. Isso significa que os intelectuais de hoje são diferentes dos gregos, cristãos, protestantes, hebreus e budistas. Eles não fizeram o seu "dever de casa". Não elaboraram um plano para gerir uma sociedade complexa como a nossa.

O que fazer então?
De Masi -
Precisamos elaborar esse modelo, mas antes devemos assimilar os modelos precedentes, verificar e aproveitar o que eles têm de positivo e descartar tudo o que foi feito que não deu certo. O Brasil tem vários fatores que os outros países não têm, como a miscigenação e a mistura de culturas. No ano passado, fizeram uma pesquisa nas escolas brasileiras e pediram para as crianças definirem em uma única palavra a cor da sua pele. Foram coletadas 104 respostas diferentes! O Brasil antecipou a situação do mundo. A cultura brasileira é uma grande força para o país, e o Brasil precisa ter consciência do poder de seu modelo, como Paris fez com o iluminismo e Viena com o modernismo. O Brasil é hoje o que o mundo será no futuro, por isso o título do meu livro, O Futuro Chegou. Por isso também, o lançamento primeiro no Brasil e depois na Europa.

 "A classe que mais copia os EUA é a dos empresários. 
Eles são hoje para os Estados Unidos o que 
os missionários representaram 
para a Igreja Católica."

Que aspectos da cultura brasileira nos aproximam da felicidade e quais nos distanciam dela?
De Masi -
O Brasil foi, por 450 anos, imitador da Europa. Depois, por 50 anos, imitador dos Estados Unidos. O primeiro erro do país é imitar qualquer outra nação. Não se deve imitar ninguém, mas valorizar-se. Não se trata de ignorar o que vem do resto do mundo, mas sim de não se sentir inferior à nenhuma outra cultura. Técnica e cientificamente, os EUA são mais desenvolvidos do que o Brasil. Isso se pode imitar, porque é positivo. Mas o Brasil tem senso de vida, tem ritmo e musicalidade, tem beleza nas relações interpessoais, é mais extrovertido, mais sensual: todos valores positivos que faltam aos norte-americanos.

Quais outras vantagens o senhor apontaria?
De Masi -
O Brasil é um país circundado por outros 10 povos e nunca provocou guerra com ninguém, exceto com o Paraguai, no século 19. É um país de cultura pacífica interna e externamente. Além disso, valoriza a vida coletiva, a cultura, as festas populares, tem a propensão à antropofagia, que é a capacidade de absorver rapidamente a cultura externa, a sensualidade e a alegria.

E o "jeitinho brasileiro"?
De Masi -
O jeitinho brasileiro é positivo porque torna as pessoas mais flexíveis, mas talvez falte aos brasileiros um pouco de serenidade organizacional. São, em geral, ainda pouco precisos, pouco confiáveis. Mesmo que o mundo siga a tendência brasileira, não existe um modelo de vida elaborado e registrado daquilo que o país já experimenta. O Brasil pode oferecê-lo, mas isso depende dos intelectuais brasileiros - eles devem traduzir esse modelo para o mundo. Eu, que observo o Brasil de fora, acredito que o país tem um dos modelos sociais mais extraordinários já criados pelo ser humano.

O tema da sua conferência magna no Brasil, em maio, é Felicidade no Trabalho: Um Desafio Possível?. Como alcançar isso?
De Masi -
A felicidade no trabalho vem da autorrealização criativa que não pode ser alcançada no trabalho unicamente braçal. Essa felicidade acontece quando se assegura aos trabalhadores liberdade, coordenação pacífica com os outros, relacionamento direto entre vida e trabalho, redução de incerteza, aumento da cordialidade recíproca e uma série de fatores que fazem com que o trabalho seja como a vida. O trabalho de chão de fábrica não é assim. Fato é que se usa a expressão "tempo livre". Ora, isso quer dizer que existe um tempo "prisioneiro", aquele intervalo de tempo em que a pessoa deve obrigatoriamente fazer o trabalho braçal. Esse tipo de trabalho deve ser reduzido ao mínimo possível. Cinco, seis horas no máximo. Não se deveria exigir de um operário que ele trabalhasse oito horas, como um professor, porque o trabalho do operário o anula, enquanto o do professor o estimula. O trabalho apenas manual, que não requer nenhuma ação criativa, é uma violência contra o ser humano. Ele é anti-humano.

Máquinas devem substituir o trabalho braçal?
De Masi -
Felizmente, hoje temos sempre mais máquinas para fazê-lo. O trabalho criativo jamais poderá ser substituído pelas máquinas e não pode ser controlado. Ele é cansativo mas é prazeroso, divertido, nos enriquece, nos faz crescer intelectualmente, enquanto o trabalho do operário deixa as pessoas mais entediadas, mais feias, menos dispostas e, acredito, menos felizes.

Um dos princípios defendidos pelo senhor é a substituição do controle pela motivação. De que forma as empresas podem motivar alguém a produzir mais e melhor no trabalho?
De Masi -
As pessoas rendem o quanto são felizes. A organização clássica do grande business school norte-americano prega que as pessoas rendem o quanto são controladas, e isso é um grande erro. Precisamos distinguir os tipos de trabalho. Dizemos que um mecânico trabalha, um jornalista trabalha, um professor trabalha, um agricultor trabalha. Falamos sempre trabalhar, trabalhar, trabalhar… Mas são atividades muito diferentes uma da outra.

Explique.
De Masi -
Uma coisa é o trabalho do metalúrgico, outra coisa o do designer. No primeiro caso, valorizamos a força física; no segundo, a capacidade intelectual. O trabalho do operário é repetitivo, entediante, já o do designer, do artista é criativo, inventivo. São duas coisas completamente diversas. Eu acredito que nenhum trabalho criativo, que hoje representa 70% de todo o trabalho humano realizado no mundo, deva ser controlado, porque isso desmotiva. O trabalho criativo não tem horário. Tu trabalhas também quando estás no cinema, por exemplo. Enquanto vês um filme, uma parte do teu cérebro pensa no artigo que tens que escrever. Criação não tem horário. O instrumento do criativo é o cérebro. Acredito que a liberdade e o resultado por meio da motivação promovam a felicidade de quem realiza a atividade. É mais fácil controlar do que motivar, mas a qualidade do resultado é inversamente proporcional. Só é preciso controlar o administrador que não consegue motivar sua equipe.

De acordo com a sua avaliação, qual é a missão de um evento como o Encontro Sul-Americano de Recursos Humanos?
De Masi -
O perigo de um evento como este é ser um meio de "norte-americanização" dos administradores brasileiros. Um evento para "bostonizar" (em referência ao modelo empresarial de Boston, EUA) os empresários sul-americanos, já que um dos erros do Brasil nesse momento é ceder à cultura norte-americana. A classe que mais copia os EUA é a dos empresários. Eles são hoje para os Estados Unidos o que os missionários representaram para a Igreja Católica. Acredito que esse encontro não deva ser um instrumento para levar mais cultura dos EUA para o Rio Grande do Sul. Cada empresário deve entender a cultura do seu país, da sua região e da sua empresa. Deve-se criar um caminho brasileiro de administração adaptado à mentalidade brasileira, que é diferente da mentalidade americana. Eu desafio que o evento procure elaborar, incentivar e promover um modelo brasileiro de administração de recursos humanos.

A serra gaúcha é uma região conhecida nacionalmente pelo apego do seu povo ao trabalho. Aqui, associa-se diretamente felicidade à prosperidade financeira. Muitos trabalham a vida toda sem desfrutar do resultado. Que conselho o senhor daria para esses ricos descendentes de imigrantes italianos que tendem a acumular cifras no banco e não investi-las na qualidade de vida?
De Masi -
Temos dois tipos de necessidades: a quantitativa, representada pelo poder e pelas posses materiais, e a qualitativa, representada por amizades, amor, beleza, convivência e introspecção - que não custam nada, não se pagam com dinheiro. Precisamos dar mais importância às necessidades qualitativas porque as quantitativas levam à alienação. Quanto mais dinheiro tenho, mais eu quero; quanto mais tenho poder, mais eu quero. Acredito que existam muitas etapas na história de um povo. A primeira é a de trabalhar muito para melhorar as condições da família. Trabalhar muito, sete dias por semana, para descansar um pouco no domingo. Essa foi a fase da pobreza, dos imigrantes da Alemanha e da Itália no fim do século 19 e início do século 20.

Mas esse modelo se perpetuou para as novas gerações.
De Masi -
Os filhos trabalharam um pouco menos mas continuaram a dividir os dias de trabalho e os dias de repouso. Esse ainda é um modelo em que se diferencia o tempo de trabalho diferente do tempo livre. A proposta do modelo pós-industrial é não saber se estou trabalhando, repousando ou me divertindo. O que faço é como eu vivo. Não é que os pais tenham trabalhado muito e os filhos queiram trabalhar pouco. O que os filhos querem viver é o ócio criativo, onde tudo se mistura: diversão, trabalho e estudo. Precisamos proporcionar aos jovens o ócio criativo. Os jovens filhos de imigrantes ou netos deveriam ter uma educação baseada nos conceitos qualitativos.
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Fonte: ZH online, 16/02/2014

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