quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

TRECHO DO "DIÁRIO DE UM SEDUTOR", DE SOREN KIERKEGAARD



"Por detrás do mundo em que vivemos, muito lá atrás, em último plano, existe um outro mundo; a sua relação recíproca assemelha-se à que existe entre as duas cenas que acontece vermos no teatro, uma por detrás da outra. Através de uma leve cortina, distinguimos como que um mundo de gaze, mais leve, mais etéreo, de uma outra qualidade que a do mundo real. Muitos daqueles que deambulam em carne e osso pelo mundo real não pertencem a este, mas sim ao outro. Perder-se assim a pouco e pouco, sim, quase desaparecer da realidade, pode ser saudável ou mórbido. O caso desse homem, tal como eu o conheci outrora sem o conhecer, era mórbido. Ele não pertencia à realidade e, no entanto, tinha muito a ver com ela. Passava sempre acima da realidade, e mesmo quando mais se lhe entregava, estava longe dela. (...)

Ele era, em extremo, intelectualmente determinado, para ser um sedutor vulgar. O diário demonstra também que, por vezes, era algo de totalmente arbitrário o que ele desejava, uma saudação por exemplo, e por preço algum quereria obter mais, por ser a saudação aquilo que a pessoa em questão possuía de mais belo. Com o auxílio dos seus dotes espirituais, sabia tentar uma jovem, sabia atraí-la a si, sem se preocupar com possuí-la, no sentido literal do termo... (...) tudo rompia sem que, pelo seu lado, tivesse havido a menor constância, sem que uma só palavra de amor houvesse sido pronunciada e, muito menos, uma declaração de amor, uma promessa. No entanto, algo ficara impresso nela [a jovem], como uma marca. (...)

A sua vida era demasiadamente intelectual para que ele pudesse ser um sedutor, no sentido vulgar do termo, embora por vezes se revestisse de um corpo parastático e fosse então, todo ele, sensualidade pura. (...) Para ele, os indivíduos nunca foram senão estímulos, e lançava-os para longe de si do mesmo modo que as árvores deixam tombar as folhas - ele rejuvenescia, enquanto morria a folhagem."

(KIERKEGAARD, Soren Aabye. O Diário de um Sedutor. Coleção Os Pensadores, volume XXXI, Editora Abril Cultural, São Paulo: 1974, páginas 147-148)
Fonte: uzecalor.blogspot.fr

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