segunda-feira, 3 de março de 2014

Doze anos de escravidão é o melhor filme

Juremir Machado da Silva*

Doze anos de escravidão é filme. Os outros são entretenimento. Levou o Oscar que merecia. Trapaça não enganou os jurados. Ficou de mãos vazias. Abaixo o texto que publiquei, na volta do Caderno de Sábado, no Correio do Povo, sobre a obra mais necessária, retumbante e emocionante das últimas décadas. O filme que falta ao Brasil.

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Tomografia da escravidão

Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir já falavam de amores contingentes e necessários. Por que não se falar em filmes contingentes e necessários? Foi o que fez Raul Juste Lores, em artigo publicado na Folha de S. Paulo, ao classificar “12 anos de escravidão”, do britânico Steve McQueen, como “o melhor e mais necessário filme em muitos anos”. A principal característica da indústria cinematográfica, especialmente a que leva a marca indelével de Hollywood, é produzir o contingente como se fosse necessário, o eterno com duração e degustação de, no máximo, duas horas e um grande pacote de pipocas.

A escravidão é uma das mais hediondas invenções da humanidade. Tão chocante e ignominiosa quanto o holocausto dos judeus pelo nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. Um holocausto praticado contra os negros ao longo de vários séculos na América Latina. O Brasil, por exemplo, teve a desonra de ser o último, já no crepúsculo do século XIX, a fechar a câmara massacrante de exploração, tortura e assassinato de africanos e de seus descendentes. Milhões de negros viveram a experiência horrenda do chicote, do tronco, da violação, da espoliação e da redução à condição de mercadoria. No Rio Grande do Sul, não foi diferente. A diferença é que não temos filmes como “12 anos de escravidão”, a história do negro livre Solomon Northup, contada por ele em livro publicado em 1853, sequestrado e vendido como escravo.

É a história do arbítrio, da violência e das contradições dos Estados Unidos: um negro livre em Nova York, convidado para tocar violino em Washington, enganado, raptado e escravizado. Cada cena estraçalha um mito. Nenhum senhor de escravos foi bom, pois ser proprietário de seres humanos é essencialmente o oposto do bem, da bondade e da dignidade. Nenhum senhor de escravo, mesmo o mais genial, pode ser realmente admirado. A escravidão é uma chaga que não pode ser justificada com o relativismo simplório da expressão cínica “eram os valores da época”. Havia quem rejeitasse esses valores. Os escravos sabiam da ilegitimidade moral do que viviam. O resto é ideologia, racismo e horror.

Por que não temos um filme como “12 anos de escravidão” sobre a mais infame noite da história do Rio Grande do Sul, 14 de novembro de 1844, quando negros lanceiros e infantes dos farrapos foram massacrados, depois que David Canabarro mandou tirar o cartuchame da infantaria, consumando-se a traição de Porongos? Por que só fazemos filmes contingentes? Por que não aprendemos a fazer filmes necessários? O desempenho de Chiwetel Ejiofor, como Salomon, é emocionante. Um negro é presidente dos Estados Unidos. Nenhum até hoje ganhou o Oscar de melhor diretor. McQueen poderá ser o primeiro. Como não pensar na escravidão brasileira? Como não insistir na situação do Rio Grande do Sul? Como não pensar nos viajantes estrangeiros descrevendo os maus tratos aos escravos no Rio Grande do século XIX? Arsène Isabelle revelando a tortura praticada em nossa campanha: pimenta colocada em incisões feitas no corpo dos negros. Apenas um pálido exemplo dessa história brasileira da tortura. Americanos reverenciam alguns pais da pátria escravocratas. Há sempre, contudo, alguém para abordar o lado sujo das suas biografias. George Washington, ao morrer, deixou, em testamento, a liberdade para seus escravos. Pragmático americano, usou-os enquanto viveu. Bento Gonçalves transmitiu os seus aos herdeiros. Pragmatismo brasileiro: não se desperdiça o patrimônio.
Depois de anos vendo filmes contingentes, enfim uma obra para encher os olhos, inclusive de lágrimas. Um filme que arranca a máscara, atira a verdade na cara, fulmina qualquer tentativa sórdida de relativismo e obriga o espectador a pensar em toda a sujeira escondida sob o tapete da sala da sua própria casa. Tivemos a coragem de inventar o mito da democracia racial e de dizer, que no Rio Grande do Sul, a escravidão foi mais branda. “Doze anos de escravidão” não é entretenimento. É arte. Entretenimento é “Trapaça”. Tudo esclarecido.
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* Jornalista. Prof. Universitário. Escritor. Colunista do Correio do Povo
Fonte: Correio do Povo online, 03/03/2014
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