terça-feira, 8 de abril de 2014

De homens e cães

Dagmar Ziba*
 
"A avassaladora "humanização" canina não tem sido objeto de amplos estudos científicos que procurem desvelar as raízes desse fenômeno e suas consequências. 
É inevitável, porém, que alguns grupos 
se sintam incomodados pelo que consideram 
um sério desvio psicológico e social"

É necessário chacoalhar a alienação ampla, robusta e festiva que perigosamente permeia as atuais relações entre os humanos e os cães.

As vantagens da convivência entre homens e cães são conhecidas há milênios. Estudos paleontológicos mostram que o nômade coletor do período paleolítico viajava acompanhado de cachorros, espécie já então extraída do complexo genótipo do lobo. Cães pastores, de guarda, farejadores etc. sempre foram e ainda são preciosos para a sobrevivência e a segurança dos humanos.
Modernamente, conhecemos o conforto psíquico que um cão traz aos donos. A ciência tem corroborado essa constatação da vida social. O reconhecimento dos benefícios dessa convivência e, mais, a condenação universal de maus tratos a qualquer espécie representam um salto civilizatório da humanidade.

Há algumas décadas, no entanto, está em ebulição um caldo cultural que fantasia uma profunda "humanização" do mundo animal. Nesse quadro, tornou-se quase um anátema não trazer para a esfera do real a encantadora tradição disneyana, segundo a qual os animais são portadores de capacidades cognitivas e emocionais iguais ou superiores àquelas dos melhores indivíduos da espécie humana. Nas sociedades ocidentais, esse encantamento revela-se fortemente a respeito dos cães, muitas vezes incorporado de forma integral à rede familiar.

Para atender a ascendente condição canina, serviços e produtos são oferecidos às famílias que alegremente custeiam não só a alimentação específica, o banho semanal em pet shops, as visitas mensais ao veterinário, o guarda-roupa de inverno, os brinquedos, mas também festas de aniversário, creches "humanizadas" (comparáveis a escolinhas infantis) e até joias. 

Ao que parece, essa avassaladora "humanização" canina não tem sido objeto de amplos estudos científicos que procurem desvelar as raízes desse fenômeno e suas consequências.

É inevitável, porém, que alguns grupos se sintam incomodados pelo que consideram um sério desvio psicológico e social.

Por exemplo, a partir de minha experiência pessoal, pergunto: como não questionar a inconsciência de um adulto que, ao dar pêsames ao vizinho pelo falecimento da mãe, equipara aquele luto filial ao próprio pela recente morte de seu cão? Como não temer as consequências da fala de um amigo que, diante de suas crianças, declara que a morte do Rex é comparável à de um filho? Como não lamentar a corrente de solidariedade que se forma na rua em torno de um cachorro doente, enquanto sua dona --uma mendiga amputada de uma perna e com enorme ferida na outra-- é ignorada?

Sim, há histórias comoventes de sacrifício e profunda dedicação de cães aos humanos. E cachorros não torturam, não corrompem, não roubam. São fiéis à família como o seriam ao chefe de sua matilha e aos companheiros selvagens.

Para aqueles que contrapõem as virtudes caninas aos vícios dos homens a fim de justificar a "humanização" a que submetem seus pets, pergunto: não conhecem humanos que fazem sacrifícios inauditos para o bem de queridos? Pergunto ainda se sabem de algum cão que tenha composto uma sinfonia, escrito um romance, um tratado científico, tenha inventado uma vacina, construído um telescópio ou se dedicado a minorar a fome na África.

São perguntas ridículas, é óbvio, mas talvez necessárias para chacoalhar um pouco a alienação ampla, robusta e festiva que perigosamente permeia as atuais relações entre os humanos e os cães.
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* Dagmar Zibas, pesquisadora aposentada, e doutora em educação pela Universidade de São Paulo - USP em artigo publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, 06-04-2014.
Fonte: IHU online, 08/04/2014
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