domingo, 20 de abril de 2014

Elogio da sombra (Jorge Luis Borges)


 
A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
 pode ser o tempo de nossa felicidade.
 O animal morreu ou quase morreu.
 Restam o homem e sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que não são ainda a escuridão.
 Buenos Aires,
 que antes se espalhava em subúrbios
 em direção à planície incessante,
 voltou a ser La Recoleta, o Retiro,
 as imprecisas ruas do Once
 e as precárias casas velhas
 que ainda chamamos o Sul.
Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos
para pensar;
 o tempo foi meu Demócrito.
 Esta penumbra é lenta e não dói;
 flui por um manso declive
 e se parece à eternidade.
 Meus amigos não têm rosto,
as mulheres são aquilo que foram há tantos anos,
 as esquinas podem ser outras,
não há letras nas páginas dos livros.
 Tudo isso deveria atemorizar-me,
 mas é um deleite, um retorno.
 Das gerações dos textos que há na terra
 só terei lido uns poucos,
os que continuo lendo na memória,
lendo e transformando.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
 a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites, entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do ontem
 e dos ontens do mundo,
 a firme espada do dinamarquês
e a lua do persa,
 os atos dos mortos,
o compartilhado amor, as palavras,
 Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las.
Chego a meu centro,
a minha álgebra e minha chave, a meu espelho.
Breve saberei quem sou.
Elogio da sombra
(Poema de Jorge Luis Borges) 

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