sábado, 12 de abril de 2014

Valesca Pensadora

Valesca Popozuda é filósofa? Não! E ninguém disse isso. Ninguém. Valesca Popozuda é “grande pensadora contemporânea”? Ela declinou o título, e lembrou que era uma brincadeira, como o próprio professor de Taguatinga, o Antônio Kubistchek, disse mesmo.
O intuito dele, no meu jargão, pode se posto da seguinte forma: vou criar um estranhamento! Como sabemos o estranhamento e a ironia estão na base da filosofia, já lá no seu início, nos gregos. Tudo isso já está certo e sabido, não temos mais que explicar e não há razão para lembrarmos o quanto os jornalistas mais afoitos e menos reflexivos se lambuzaram no episódio. Vamos agora para outra parte do caso: a sociedade.
Passado o primeiro momento, algumas pessoas perceberam que pisaram na bola e que o intuito do professor podia muito bem ser visto de modo inteligente, como de fato foi. Todavia, mesmo assim, resolveram continuar malhando a educação brasileira como um todo e, de certo modo, o professor. A educação brasileira deve ser malhada, quem não concorda? Basta que a crítica seja feita com a atenção para a desatenção da própria sociedade e dos governos para com o salário do professor. Sem isso, não acho que a crítica pode ter alguma legitimidade. Não há educação com a hora-aula em nove reais. Mas a crítica não tem ido por aí!
bellini

A crítica em forma de falso humor veio pela via indireta. E nisso o professor Antônio acertou  
em cheio: uma boa parte das pessoas não só não entendeu a ironia como veio com asnice para a via raivosa: “se Valesca Popozuda é pensadora então eu sou um símio” – disseram vários. Sim, quem pensa assim é um símio. No bolo todo da conversa, surgiu o que tinha de surgir: a indisposição diante de quem usa o corpo seja lá quem for.
O funk e o uso do corpo, como Valesca faz, não a qualifica como quem intervém na sociedade, paralelo ao que nós filósofos fazemos? Todos que intervém na sociedade pela performance corporal são ou conservadores ou inúteis? A chamada linguagem corporal é essencialmente algo de segundo plano? Como entretenimento e apenas como entretenimento ela não vale nada? A linguagem corporal só é válida se estiver no plano da cultura erudita ou cultura acadêmica? A linguagem corporal no âmbito da cultura popular e da cultura de massas não são elementos sociais de respeito e de análise? (estou usando aqui a conceituação quádrupla de cultura do professor Alfredo Bosi).

Charlie Chaplin
Aviso para os tolinhos, antes que seja tarde: não estou dizendo que a linguagem corporal, seja a de uma dançarina clássica seja a da Valesca, ou a do Pelé, passando por Elvis, Michel Jackson, Cassius Clay, “Carlitos”, Clodovil e o Robocop, são todas iguais, ou que seus realizadores podem receber um título do tipo “grande pensador contemporâneo”. Nada disso. Estou dizendo que Valesca Popozuda é proprietária de uma linguagem corporal que tem o seu lugar na sociedade brasileira e que diz alguma coisa interessante – é efetivamente uma linguagem. O bordão “beijinho no ombro” é um bordão falado pela boca e pelo resto do corpo. Criar isso e fazer isso “pegar” é algo interessante de se estudar, de entender. Tanto quanto entender a razão pela qual Elvis, ao começar mexer os quadris de um modo esquisito, não muito “másculo”, conquistou a todos e mudou o padrão da dança americana e do mundo. Mudou o padrão do andar, inclusive.

Por esses dias a imprensa comemorou um gesto do recém-falecido Belini, o eterno capitão da Seleção Brasileira de Futebol. Ele havia levantado a Taça e, com isso, implantou um padrão gestual de vitória, que se consagrou. Ele disse que não foi intencional. Mas, devemos notar que depois dele o gesto tornou-se “obrigatório”. Pelé inaugurou a comemoração de gol dando murro no ar em salto. Foi padrão durante muitos anos. Quando jogadores e artistas se confundiram na tela, vieram as “dancinhas” para comemorar gol. Virou moda durante um tempo.

Somos seres miméticos. Todos na superfície da Terra são miméticos. Tanto é verdade que os cachorros e os seus donos (pais humanos, na nova linguagem) se tornam parecidos. Desde o tempo que éramos apenas um grupo de aminoácidos começamos isso, o mimetismo. Entender o que um padrão corporal comportamental faz no mundo é entender o mundo.

Valesca Popozuda ocupa hoje um lugar de outros. Sim! Claro. Mas ela o faz de um modo não tão simplório quanto o que se pensa à primeira vista. E o funk não é uma bobagem do mesmo modo que Odair José não foi uma bobagem. Do mesmo modo que Diamante Negro com a “bicicleta” não foi uma bobagem, nem o braço semidobrado com as costas da mão voltada para o povo, em saudação leve, feita por Vargas, foi uma bobagem. Durante anos as pessoas no Brasil ficavam esperando esse gesto em outros políticos, para ver se podiam chama-los ou não de “chefe”. O sorriso de Obama e o de Kennedy não são uma bobagem, são intervenções que se fazem necessárias na América, em especial para o eleitor democrata (para além do que Pondé pensa, uma vez que ele reduz Obama a um simples marqueteiro, sem entender muito dos Estados Unidos).

A compreensão do funk como um elemento que tem um pé na cultura popular e um pé na cultura de massas, como algo que Valesca Popozuda põe no palco de um modo distinto, é fundamental para continuarmos a entender o Brasil. Quando escravos dançavam capoeira e o senhor, lá na Casa Grande, tremia de medo, ele não pensava que poderia ser atacado. Ele tinha armas e estava seguro. Seu tremor e temor vinham de outro canto de seu cérebro. De certo modo ele percebia o que hoje nos é claro, e mais ou menos intuía: um dia esses gestos dessa dança macabra podem estar sendo os gestos de meus filhos, e então todos nós já não seremos brancos! Dito e feito.

Muita gente no Brasil pensa que os livros devem falar da alma, não do corpo, como se todos nos andássemos por aí como anjos ou zumbis. É incrível que ainda pensemos assim, mesmo em uma época que a saúde e o corpo dominaram de vez nossa identidade, nossa pessoalidade.

Valesca é “pensadora”. Faz pensar. “Pensa” com sua fisiologia. Compreender isso é ampliar o campo semântico de um modo que só o filósofo alemão Peter Sloterdijk, munido de antropologia (Ah! Levi Strauss, e saber que você viveu aqui heim?) tem conseguido fazer no campo propriamente filosófico. Faz tempo que tenho, eu mesmo, tentado essa via de não esquecimento do corpo.
------------------------------
* Paulo Ghiraldelli, 56, filósofo. Autor de A filosofia como crítica da cultura (Cortez)
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/valesca-pensadora/

Nenhum comentário:

Postar um comentário