domingo, 11 de maio de 2014

OS FIOS DAS NARRATIVAS

 
 O homem precisa de modelos a seguir, e a indústria do consumo tenta te convencer de que aquela blusa 
de oncinha que a Gisele usa na vitrine da C&A pode 
te transformar um pouco na Gisele.
Foi em Minas Gerais que o talento para o desenho aflorou em Ronaldo Fraga; a moda seria apenas uma consequência feliz do acaso. “Era época do fim da ditadura e eu era extremamente militante, só lia literatura política. Então, como o Senac ficava longe, pensei que nenhum amigo iria descobrir que eu estava estudando desenho de moda e eu também não iria contar.” Do acaso nasceu o ofício realizado com bastante satisfação e reconhecimento. Aos 46 anos, o mineiro, natural de Belo Horizonte, acaba de ser eleito um dos sete estilistas mais inovadores do mundo pelo Design Museum de Londres. “Pensei: ‘Por que eu? Já já tenho que pagar alguma coisa!’ (risos)”. No museu está exposta a sua coleção Carne Seca, que retrata a caatinga brasileira. “O que acho legal é que na minha geração, quando eu era jovem, quando comecei nos anos 1990, era improvável que um brasileiro estivesse naquele lugar.” A humildade que carrega vem dos anos de trabalho e de autocobrança, já que, para ele, “o sucesso é o canto da sereia”. O reconhecimento é consequência de um trabalho na moda que busca abarcar a cultura por meio de diversas frentes: literatura, artes plásticas, esporte, política e música são apenas alguns exemplos de suas inspirações. As criações do estilista são marcadas por tantas referências que, no fim, seu trabalho se mostra como um incrível vetor de rememoração da cultura brasileira, ajudando a construir e revelar a identidade do povo. Em março passado, Ronaldo participou do SPFW com uma coleção inspirada nas obras do pintor Candido Portinari, e agora ele assina os desenhos do clássico Mary Poppins, que será lançado neste mês. As ilustrações feitas para o livro eram enviadas para Stella Guimarães e sua equipe de bordadeiras de Itabira, no interior de Minas, que trabalham há um bom tempo com o estilista. Dos bordados foram feitas as imagens para a publicação. “Ele foi todo ilustrado em 40 dias, o pessoal da editora tinha urgência. Eram 15 desenhos que, quando foram feitos, ganharam muita importância.” Os bordados serão expostos no lançamento do livro, mas não existe a pretensão de que os desenhos se transformem em uma nova coleção. “Tenho muitas outras histórias para contar.”



No último SPFW, sua coleção foi inspirada na arte de Cândido Portinari. Mas, em outros momentos, você também já se valeu do trabalho de Athos Bulcão, mergulhou no universo do sertão nordestino e, agora, acaba de assinar as ilustrações de um clássico da literatura, Mary Poppins. O que tudo isso diz sobre os seus anseios?
Existem valores que, de tempos em tempos, nós perdemos, reinventamos ou reconstruímos e resgatamos. Claro que, nesta época, temos valores que foram pelo ralo. Vivemos tempos extremamente pouco afetuosos, pouco generosos. Então, são valores de afeto, de generosidade e de carinho que procuro investigar. Foi o que me levou para São Borja [no Rio Grande do Sul] para trabalhar a crina de cavalo com senhorinhas. É algo característico do artesanato andino, o que é as pessoas fazerem tricô com crina de cavalo? E aí, muito mais do que o produto em si, é a história por trás desse produto. Vivemos tempos desmemoriados e não queremos consumir coisas mudas. Então, nesse novo cenário, as coisas precisam falar. Quando elas falam, se tornam muito mais interessantes, ganham mais valor. Quando você olha uma peça e por trás dela vê uma história inteira, é muito interessante. Fiz uma coleção ano passado em um curtume do semiárido em Petrolina [no estado de Pernambuco]. Quando cheguei lá, o dono do curtume mostrou as peles, o que eles faziam, vi um monte de pele de boi empilhada e ele disse que tinha defeito, que elas trazem a marca da vida do boi. Os de Petrolina trazem a marca dos espinhos da vegetação. Isso não é defeito, é atestado de procedência, em um momento no qual o couro é sintético. Além dos tempos desmemoriados, vivemos em tempos míopes. O que vai se fazer com tanta pele? Ninguém vai parar de comer carne. O couro vegetal polui muito mais do que o couro normal. Até na produção.

Quais elementos da sua ilustração deram um tom de contemporaneidade ao clássico escrito há 80 anos?

O que foi delicioso e ótimo é que eu não tinha visto o filme e não tinha lido o livro. Primeiro, a Cosac Naify mandou o texto em inglês e eu enlouqueci, é maravilhoso. Ainda bem que eles fizeram isso, porque o filme da Disney, fui ver depois, é um lixo. A personalidade da Mary é uma coisa impressionante. Fora o filme da Disney, a história nunca foi ilustrada. A primeira versão só tinha o desenho dela flutuando na capa. Foi uma costura de impressões minhas e do pessoal da editora. O que a Mary tem que eu gosto muito é aquele humor inglês, e é uma história universal, atemporal, ela te provoca e te transforma em qualquer lugar. Eu poderia ter trazido todo o cenário de São Paulo para ela, mas aí teríamos que mexer no texto, que não foi publicado no Brasil ainda e é cheio de referências a prédios que ainda existem por lá. Então, você vai passear nos parques de Londres e imaginar que pode entrar em um quadro, assim como Mary fez. Procurei trazer isso para o desenho. Sugeri que fossem em preto e branco, porque o texto já é imagético, ele já te traz cheiro e cor, e eu quis que cada um colorisse a Mary como quisesse. Então, eu trouxe o Brasil por meio do bordado, que a Stella Guimarães fez com a equipe de bordadeiras lá de Itabira, uma equipe que trabalha comigo há muito tempo. Era para eu fazer 15 desenhos, fiz 55. Eu fazia o desenho, que ia para a Stella, e ela mandava seu trabalho pra cá. O desenho era bordado em fios, porque era como se o vento leste e o oeste estivessem no livro. Quando ele traz a Mary e quando ele a leva embora, tem essa coisa do desfiado, também a questão do fio da história.

Logo no início do livro, Mary Poppins e seu amigo vão para um mundo fantástico de dentro do quadro dele. A forma como eles mudaram para um local longe de preocupações e cheio de harmonia é marcada pela mudança de roupas desses personagens. Você acredita que as pessoas já compreenderam o real poder de transformação, externa e interna, que uma roupa pode causar?
Acho que isso demanda cultura e entendimento. E a grande maioria das pessoas não tem noção de que a roupa existe para isso. Do contrário, estaríamos envoltos em pele até hoje. A Mary Poppins é uma figura extremamente inteligente e segura, muito bem desenhada, e ao mesmo tempo fascinada por roupas. A única coisa que joga ela no chão é quando ela passa na vitrine e para pra se arrumar. Esse feminino também é muito interessante nessa história, é nesse ponto que justificou a escolha da Cosac por um estilista para ilustrar, e não um designer gráfico.

Outro ponto do livro é que Mary é uma mulher segura de si e independente. É para esse tipo de mulher que a moda se revela?
A moda é um vetor de comunicação, de transformação do olhar, principalmente de quem veste. Como a literatura é um vetor de transformação, o cinema, enfim. Neste caso, a Mary usa a moda da forma como ela tem que ser usada. Se ela tiver que fazer mágica com um acessório, ela vai fazer. Acho que não é para uma mulher segura, acho que a moda é um vetor que pode dar segurança para as pessoas. É um superauxílio na construção diária de uma personagem.

E até que ponto você acredita que a mulher se vê representada nas passarelas?
O homem precisa de modelos a seguir, e a indústria do consumo tenta te convencer de que aquela blusa de oncinha que a Gisele usa na vitrine da C&A pode te transformar um pouco na Gisele. Tanto que tudo o que ela veste, segundo dizem por aí, é o que acaba imediatamente. Isso tem muito mais a ver com o grupo precisar de um modelo a seguir, e esse modelo não é um modelo espelho, é o modelo que ele não vai ser. É por isso que a modelo vai continuar magra, com as pernas longas. E o modelo de beleza do mundo é o modelo anglo-saxão. Apesar de a Gisele ter um borogodó brasileiro, ela tem uma beleza anglo-saxônica.

Como você enxerga o caminho da moda em relação à inclusão dos diversos tipos de corpos femininos e masculinos?
A moda, historicamente, nunca foi tão democrática quanto nos nossos dias. Alguns dizem que é apenas mais uma face de uma ditadura, porque ela cobra das pessoas algo que elas não sabem: escolher. Já ouvi jornalista e editor falando “para com esse negócio de liberdade, é muito difícil”. Essa liberdade de escolha não é só da moda, é do mundo moderno, é mais um estímulo ao consumo. Daí vem a moda plus size, a moda evangélica. Eu gostaria que a moda estivesse trazendo uma conquista da liberdade real, mas só o tempo vai dizer.

Recentemente, uma pesquisa polêmica do Ipea divulgou que um grande número de entrevistados acreditavam que mulheres com roupas curtas mereciam ser abusadas sexualmente. O que isso revela sobre o campo da moda?
Volto naquele ponto que falei anteriormente: para entender a moda demanda-se cultura e entendimento. O resultado dessa pesquisa revela um país ignorante, medieval, uma sociedade medieval. Esse entendimento cultural, de cultura e educação, não é só na moda, isso se reflete no que as pessoas estão comendo, por exemplo. Estamos extremamente mal-educados. Este Brasil novo-rico revela uma face muito esquisita, acho que muito perigosa. Por outro lado, dizem que um consumidor bem informado, educado e culturalmente bem suprido consome menos, não consome enlouquecidamente, como o mercado vem pedindo. Então, para eles, é muito bom que continue assim.

Você sente algum estranhamento no universo da moda manifestado por outros criadores quando você mergulha em artes tão profundas e importantes?
Acho que já foi pior, já me colocaram em uma prateleira, dizendo: “Esse menino é isso”. Já me compartimentaram. No início era uma coisa de as pessoas se sentirem ofendidas, tanto a imprensa quanto os colegas. “Isso que ele fez não é moda, é samba-enredo.” Não era comum. As pessoas atiravam para todos os lados e diziam que aquilo era a inspiração delas. A questão da polêmica acerca do bombril usado como peruca das modelos evidencia o preconceito e o desentendimento que as pessoas têm com a moda. O alcance delas vai até onde a moda é uma passarela branca, com um bando de gente afetada de óculos escuros, com uma mulher loira bem magra andando pra lá e pra cá e tocando música eletrônica. Isso pra mim tinha passado há muito tempo. A moda é um vetor de comunicação poderosíssimo. Não sou eu quem fala, os últimos 30 anos mostram isso. Sinaliza o tempo que o Brasil está passando, um momento muito perigoso de uma intolerância de todas as formas. É um momento de linchar e depois a gente pergunta, se pergunta, e vem de pessoas de todos os níveis. Sofri de pessoas de todos os níveis, até de apresentadora de TV, e fico imaginando: “Acho que ela pensa”. Por parte dos próprios colegas, tem uma desarticulação muito grande, por isso a crise.

Tudo isso evidencia um público consumidor de moda conservador?
A palavra não é conservador, a palavra é ignorante. A gente está vivendo uma época de cegueira total, estamos importando o pior dos países. O pior da cultura americana. Está sendo despertado um racismo que nunca tivemos. Ao invés da construção de uma terceira via que é a grande expectativa. As pessoas têm cada vez mais medo de se expressar, de falar, e isso as torna apáticas.

Você enxerga essa situação como uma regressão em nossa evolução?
Se fosse regressão, ainda estava bom. Estamos caminhando para um lugar de cegueira absoluta. O Portinari morre em 1962 e logo na sequência, com o golpe de 1964, ele entra em um ostracismo de 20 anos invisível na cultura brasileira. A direita o considerava de esquerda por motivos óbvios, já que ele era comunista, e a esquerda o associava ao governo, por suas obras estarem nos prédio públicos. Certa vez, vi uma entrevista do Ferreira Gullar em que ele dizia ser um dos que bravamente ‘queimaram’ o Portinari, e ele diz que isso foi importante, porque a sua geração precisava negar a geração anterior para construir algo novo. É isso que o Brasil faz até hoje: nega a geração anterior para poder inventar a roda novamente. Dessa negação, a gente não chega a lugar nenhum, porque não existe apropriação. Aproprie e depois veja o que você vai fazer para não cair no lugar ridículo de achar que você é o inventor da roda.

Você vai contra essa negação do antigo para trazer o novo. O que suas referências revelam sobre quem você é?
Entrei na moda pelo desenho, quase por acaso. Venho de uma família de cinco irmãos que perderam os pais muito cedo. Meu sonho era que alguém pagasse pra mim um curso de desenho, mas nunca ninguém pagou. Então, fazia qualquer desenho; se tivesse alguém pra ensinar a desenhar, eu ia. Um dia, encontrei uma amiga que estava com uma pasta de desenhos de moda. Ela estava fazendo o curso no Senac e era gratuito. E fui sem pretensão de nada, eu era adolescente, era época do fim da ditadura e eu era extremamente militante, só lia literatura política. Então, como o Senac ficava longe, pensei que nenhum amigo iria descobrir e eu também não iria contar. E aí o setor de colocação profissional da instituição me chamou para oferecer um emprego em uma loja de tecidos. Iam me pagar, foi o meu primeiro emprego. Pensei: “Gente, vou desenhar o dia inteiro e vão me pagar”.

Sonho, né?
Pesadelo, né? Quando abriu a porta, tinha umas 30 mulheres com rolos de tecidos, baixa, alta, gorda, magra, pobre, rica. Eu não tinha vocabulário, não entendia de costura, estraguei muito tecido, mas, ao mesmo tempo, comecei a ouvir, aprendi a ouvir o outro para trazer para o papel algo que a pessoa não sabia fazer. Depois, fiz faculdade, fui para Nova York e Londres e, quando voltei para o Brasil, entendi que essa experiência foi determinante para o caminho que construí em minha carreira, que era ouvir histórias de todo mundo.

Você tem uma relação com a criação de Zuzu Angel, que é homenageada atualmente em São Paulo e era uma mulher da moda que carregava as próprias indignações para os croquis. O quanto disso toca no seu trabalho?
Li o livro Brasil: nunca mais, de Jaime Wright, Paulo Evaristo Arns e Henry Sobel e foi ali que conheci sobre a Zuzu Angel e pensei em como ela era incrível e poderia ter sido minha tia costureira. No entanto, ela pega o que tinha nas mãos e, de uma forma brilhante, denuncia a tortura que havia no Brasil. Esse meu encantamento virou uma coleção anos depois. Eu acho muito sério o ofício que você escolhe, porque muito mais do que pagar as contas, é o seu canal de comunicação com o seu tempo.  Seja essa indignação política seja emocional, com o espaço da moda, maior ou menor, seu ofício pode ser um canal de comunicação muito poderoso. O meu trabalho é isso, a moda não pode perder essa essência. Tento colocar as minhas indignações no meu trabalho.
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REPORTAGEM POR  Renata Vomero 
Fotos Rodrigo Braga
Fonte: http://www.revistadacultura.com.br/entrevistas/conversa/14-05-05/

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