quinta-feira, 15 de maio de 2014

Trágico epílogo de uma fé obtusa. Artigo de Gianfranco Ravasi



Na prática, a fé de Abraão foi uma fé aberrante, fundamentalista, obtusa, que se opunha à verdade do amor em nome de um deus idolátrico. O verdadeiro Deus não exige nunca que a sua criatura renuncie à sua dignidade, à sua liberdade, ao amor.

A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 11-05-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

"Assim, na igreja branca da minha infância
o evento era retratado. Um bode
de repente saía da estepe
e uma mão docíssima no fim parava
a lúcida lâmina próxima da carne pura.
À mesma montanha
 meu pai me conduziu criança...
Oh, Senhor meu, amado e cruel!"

Assim David M. Turoldo, em uma balada dedicada a um dos mais dramáticos eventos da saga patriarcal do Gênesis (cap. 22), evocava o êxito final daquela obscura e perturbadora subida de Abraão ao longo da encosta do Monte Moriá, segurando a pequena mão do seu filho Isaac.

Sobre os dois pendia ameaçador o imperativo divino sanguinário: "Abraão, tome seu filho, o seu único filho Isaac, a quem você ama, e ofereça-o aí em holocausto, sobre uma montanha que eu vou lhe mostrar".

Um imperativo que – além de ser escandaloso e ligado a uma truculenta práxis ritual pagã – contradizia e evitava a própria promessa que tinha dado justamente aquele filho ao velho casal de Abraão e Sara já estéreis.

Ao redor desse paradoxo, envolve-se todo o fio da tensão narrativa que chega ao instante trágico quando as razões da fé conseguem vencer as da paternidade, e Abraão levanta a navalha, depois de ter amarrado (a 'aqedáh, em hebraico, a "ligadura" sacrificial, que o judaísmo assumirá como símbolo da Shoá) o filho sobre o altar para um gesto imoral de fé.

A imaginação corre para a tela de Rembrandt (imagem acima), no Hermitage, que introduz o extremo estremecimento de amor paterno com a mão esquerda de Abraão cobre os olhos de Isaac, para que não veja a mão direita que empunha a faca.

Anos atrás, eu tentei seguir a tradição teológica, filosófica, artística, literária e musical que brotou dessa extraordinária página bíblica, mas, no fim, tive que desistir por causa da enorme quantidade de material que se acumulava. Até o início da Em busca do tempo perdido, de Proust, se assoma a "uma incisão tirada de Benozzo Gozzoli e que foi dada a mim pelo Sr. Swann, na qual Abraão diz a Sara que precisa se separar de Isaac".

Já aparecia aqui uma surpreendente interpretação da cena: o sacrifício de Isaac é a separação da mãe. Sim, porque, em torno da provação do Moriá, adensaram-se as mais variadas hermenêuticas: a psicanalítica de Linard de Guertechin via nisso o contraste entre a paternidade tirânica e a filiação que não pode ser considerada como posse; a leitura antropológica de Girard intuía no bode imolado por Abraão no fim o substituto da violência social que percorre as gerações e os componentes de um povo; a interpretação política de Kolakowski transformava a cena em uma parábola da razão de Estado e dos seus crimes endossados em nome de Deus; a análise filosófica de Kant desmitificava aquele mandamento, remetendo-o, por causa da sua realidade imoral, ao engano satânico.

Penso, porém, que a análise mais aguda foi elaborada por Kierkegaard no seu Temor e Tremor, que, no relato, descobria o paradigma da fé autêntica e suprema. Para ser tal, ela também deve se despojar do apoio palpável e concreto do filho dado por Deus. Através dessa nudez absoluta, Abraão não só alcança o cume da fé, mas recupera o filho verdadeiramente como fruto exclusivo da promessa divina, já que o pai tinha renunciado lá embaixo ao filho carnal.

Por isso, continuava o filósofo dinamarquês, Deus tinha exigido a fé no nível genuíno e total àquele que se tornaria o "pai dos crentes", comportando-se como a mãe que, para desmamar a criança e torná-la autônoma, a separa do seio, em um gesto de amor altíssimo que, ao contrário, a criança sente como uma rejeição.

Pois bem, Kierkegaard, no seu ensaio, hipotetizava livremente resultados diferentes do relato: por exemplo, Abraão, tendo chegado ao topo do Moriá, poderia ter se retratado, descendo novamente com o filho para as tendas de Manre.

Um filósofo contemporâneo de destaque como Ermanno Bencivenga – ao qual devemos textos altamente sugestivos também para um público mais amplo e que revelou um profundo interesse por uma interlocução com as questões de fé – também imaginou uma alternativa à narração bíblica, sobrepondo a ela uma tragédia em três atos, com um final horrível.

Abraão realiza sem reservas a ordem divina que lhe foi transmitida pelos três misteriosos viajantes que o tinham visitado no seu acampamento (Gênesis 18-19). Seria o servo que tinha acompanhado Abraão e Isaac que descreveria aquele ato terrível entrevisto de longe, aos pés da montanha, no contorno do céu: Isaac "vira as costas ao pai, que, de repente, o agarra e fecha o seu pescoço com uma prensa e levanta a faca (...) e atinge Isaac (...) na garganta (...) e o seu corpo, que antes (…) estava tenso como um arco, (…) se solta, relaxa".

A mãe, Sara, enlouquece com a dor, Abraão retorna sombrio para a sua tenda. Mas é aqui que começa a impressionante reversão do episódio, através do retorno dos três mensageiros divinos que tinham vindo para trazer-lhe o mandamento da morte. Estava naquele absurdo imperativo a verdadeira prova da fé do patriarca, uma prova infelizmente fracassada.

De fato, "a prova era ter fé suficiente em Deus a ponto de saber recusar aquelas palavras, porque a tua fé te ensinava que não podiam vir d'Ele, que não podia ser aquilo que Ele queria de ti, aquilo que ele te pedia para fazer".

Na prática, a fé de Abraão foi uma fé aberrante, fundamentalista, obtusa, que se opunha à verdade do amor em nome de um deus idolátrico. O verdadeiro Deus não exige nunca que a sua criatura renuncie à sua dignidade, à sua liberdade, ao amor. E Abraão, no fim, depois de um esforço de conversão, confessa: "A minha escolha não foi realmente uma escolha. Eu traí o meu filho, a minha casa e o meu Deus; fiz isso por nada. Sou apenas um louco... Um tolo cala mesmo quando fala, é mudo mesmo quando berra... Ficou-me só o silêncio, e no silêncio apagarei a minha vida".

Mas, nesse ponto, há no drama de Bencivenga uma sequência final que deixamos para que o leitor decifre, imersa na aura onírica do prodígio.

Nós, ao invés, voltamos a Kierkegaard e a uma fulgurante consideração sua que toca o coração profundo do drama de Abraão: "A fé é a mais alta paixão de todo homem. Talvez, haja em cada geração muitos homens que não chegam até ela, mas ninguém vai além".
  • Ermanno Bencivenga. Abramo. Tragedia in tre atti. Torino: Nino Aragno, 66 páginas.
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Fonte: IHU online, 15/05/2014

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