sexta-feira, 27 de junho de 2014

ADULTÉRIO: CONTRATO E TRANSGREÇÃO

Eliana Cardoso*

A forma geradora da literatura ocidental é o triângulo instável do adultério e não a simetria estática do casamento, diz Tony Tanner em "Adultery in the Novel" (Adultério no romance), que examina a obra de Rousseau, Goethe e Flaubert. A afirmação de Tanner parece exagerada quando a avaliamos, por exemplo, sob a luz dos admiráveis romances de Jane Austen, nos quais a identidade da heroína se desenvolve durante a vida de solteira e se revela no casamento.

Tanner, entretanto, parece coberto de razão quando nos lembramos do papel do adultério na geração de mitos. A infidelidade de Helena provoca a Guerra de Troia narrada no épico grego. O adultério de Guinevere e Sir Lancelot leva à queda da Távola Redonda. Essa tradição antiga nos coloca também diante de transgressões heroicas: os personagens pertencem a casa reais e consequências trágicas decorrem da infidelidade.

Tradição mais bem-humorada deriva da ironia em relação ao corno. As histórias do homem idoso e sua mulher jovem informam os "Contos de Canterbury", de Chaucer, e o "Decameron", de Boccaccio, que minimizam implicações morais ou religiosas.

Acumulam-se tradições decorrentes dos diferentes sentidos do adultério. O protagonista com seu desejo, paixão e sexualidade impõe questões de identidade, enquanto o casamento, a família, contratos e proibições religiosas apontam o adultério como ato social. Em certos períodos históricos, a ênfase recai nas mudanças da posição social do adúltero, como na tradição protestante, anunciada por Samuel Richardson. A tentação ocupa aqui espaço central e, seguindo o "Novo Testamento", nessa perspectiva o adultério se transforma em pecado da mente associado ao corpo definido como templo do Espírito Santo. Modelada nessa fé, a heroína de Richardson, Clarissa Harlowe, resiste ao controle sexual de seu corpo por Robert Lovelace.

Alguns textos-chave da literatura americana pertencem a essa tradição. A sociedade protestante e patriarcal serve de pano de fundo para "A Letra Escarlate", de Nathaniel Hawthorne. Não há interesse no ato físico do adultério, mas ênfase nos estados internos de Hester Prynne e Arthur Dimmesdale. O sentimento de pecado impede a fuga dos amantes mais do que a pressão social. A redenção exige o preço da confissão e da morte, chocando o leitor contemporâneo, acostumado a identidades menos legalistas e a um tratamento mais generoso da traição sexual.

"Madame Bovary", alicerce do romance moderno, também conta uma história de adultério, indo muito além da insatisfação e do sofrimento da heroína. Flaubert explora a possibilidade de que a palavra não consiga captar a vida, usando técnicas diversas para mostrar a inadequação da linguagem na expressão de emoções e ideias, como a incapacidade de comunicação entre os personagens. No primeiro capítulo, o professor não consegue entender o nome de Charles. Emma se depara com a desajuste entre a linguagem e o sentimento quando tenta mostrar sua angústia ao sacerdote e seu amor a Rodolfo. Charles interpreta a carta de Rodolfo como uma nota de afeto platônico. A vida de Emma é um tecido de mentiras que contribui para o sentimento de que a palavra seria mais eficaz para obscurecer a verdade do que para representá-la.

Emma é mentirosa por natureza e começa a enganar o marido antes mesmo do primeiro adultério. Vive fora da realidade e tem uma mente rasa. Lê muito, mas lê mal. Lê tomada pela emoção, colocando-se no lugar das heroínas dos romances. Sua beleza, charme, presença de espírito e seus momentos de ternura e compreensão encobrem sua vulgaridade e hipocrisia.

Daríamos voltas desnecessárias ao dizer que o meio moldou Emma. Mas é verdade que, enquanto os homens tinham acesso à propriedade, o corpo de Emma era sua única moeda, o capital que negociava em segredo, pagando o preço da vergonha e a despesa adicional da mentira. Quando ela precisou de dinheiro para pagar dívidas, os homens o ofereceram em troca de favores sexuais.

De todos os ventos que chicoteiam o amor, o dinheiro é o mais frio e o mais destrutivo. Nem por isso a adúltera é vítima. Se os limites sociais lhe impunham a escolha entre felicidade ou fidelidade, ela toma seu destino nas próprias mãos ao escolher a infidelidade a Charles. E a estrutura do romance exige que Emma assuma a responsabilidade das próprias ações.

Flaubert usou o desgosto de Emma Bovary com seu grupo social para expressar a própria repulsa pela sociedade de seu tempo e o lado ridículo e sufocante das atitudes burguesas. O termo burguês em Flaubert nada deve à conotação marxista. Corresponde à descrição de pessoa dominada pelas convenções e interessada apenas no lado material da vida. Emma, ela mesma, tem um traço burguês. Embora caráter e acaso sejam fatores importantes no romance, ele se encaixa também na tradição que entrelaça o adultério a seu contexto social.

Nessa linha, considere "Pelos Olhos de Maisie", romance em que Henry James usa a criança no centro de sua ficção sobre o adultério. As ironias geradas são ricas e complexas. O que Maisie sabia não era o saber da sociedade adulta sofisticada, que se habituou ao adultério e ao divórcio, mas sua falsidade, a quebra dos votos e promessas. O adultério torna-se, como em grande parte do romance americano moderno, sintoma da sociedade em que a perda de valores acarreta relações pessoais sem conteúdo.

Freud ensinou que o preço da civilização é a repressão. A literatura contemporânea prefere a anarquia da libido sexual. Como resultado, o adultério na literatura pós-moderna nada significa além do drama pessoal.

No exame desse drama, "Nada a Dizer", de Elvira Vigna (Companhia das Letras, 2010), muda o foco daquela que trai para o da mulher traída. No sofrimento pessoal se concentra a força da narrativa em primeira pessoa sobre os questionamentos e a agonia da mulher enganada. A narradora sem nome descreve a posição do marido e da amante, repassa obsessivamente cada episódio do adultério na busca de explicações e de uma atitude para enfrentar a dor. Reflete sobre a posição feminina. O entendimento da própria inserção cultural torna a traição ainda mais terrível. "Enganada, traída, largada para trás, igual a qualquer outra. Rá, rá. No olhar dos outros, inscrito o que minha mãe chamaria de destino de mulher. Nasceu com boceta? Vai ser enganada. Traída, humilhada."

O clichê sobre a cisão do desejo masculino em duas vertentes - uma terna e afetiva, outra erótica e sexual - se repete agora no contexto pós-moderno da epidemia de aids. "Li em seu rosto que ele achava que me fazia bem eu considerar N. uma mulher promíscua. Que eu, a esposa traída de meia-idade, me sentiria melhor se ele não refutasse a hipótese de sua amante ser uma puta. Eu afundava, mais e mais, em estereótipos, e Paulo continuava a me ajudar para que assim fosse. Agora, eu era a mulher merda, banal, medíocre, imbecil que tinha sido traída. E era também a mulher merda, banal, medíocre, imbecil que tinha a reação típica de todas as mulheres merdas, banais, medíocres, imbecis ao serem traídas: pedir teste de HIV."

A narradora de "Nada a Dizer" está em busca de uma identidade que seja compatível com a desconfortável contradição entre seu contexto cultural e a dor da traição. Um dos grandes conflitos vividos pela narradora deriva de sua militância pela liberação sexual e o sentimento de que trai seus ideais e se sente perdida: "Fomos nós, os que fizemos sessenta anos no início do século XXI, os que lutaram e enfrentaram hostilidade de todo tipo para que pudéssemos viver, todos, do jeito que quiséssemos, trepando com quem quiséssemos, sem que as peias e o jugo de uma estrutura burguesa conservadora tivessem algo a ver com as decisões pessoais de cada um".

Após a crise e o caos, ela se torna outra mulher. Perdas e danos se diluem no passado que ela e o marido deixam para trás. O adultério põe a nu a horrível ingenuidade do casamento aberto. Como nos faz entender a narradora sem nome, uma relação sexual-amorosa modifica seus participantes e afasta deles os excluídos.
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* Eliana Cardoso, economista e escritora, escreve neste espaço quinzenalmente
FONTE: Valor Econômico online, 27/06/2014
 

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