sábado, 14 de junho de 2014

Crueldade humana pode assumir faces ocultas e devastadoras

Crueldade humana pode assumir faces ocultas e devastadoras Divulgação/Arquivo Pessoal
Professor de psicologia social, Alex Haslam sustenta que colaboradores de maldades acreditam que estão numa causa nobre 
Foto: Divulgação / Arquivo Pessoal

Desassistência social combinada com impunidade alimenta crimes e maus-tratos, dos mais rumorosos aos que, de tão corriqueiros, tornam-se invisíveis

As pessoas se horrorizam quando veem na TV as crianças feridas por bombardeios na já prolongada guerra civil da Síria, no Oriente Médio. Ficam indignadas quando alguém atira uma pedra num cachorro de rua e depois se põe a rir dos ganidos do bicho a capengar. Mas até que ponto se consegue perceber as maldades ocultas? Ou aquelas que, de tão rotineiras, já anestesiaram nossos sentimentos?
A crueldade humana é ancestral, repete-se à exaustão, mas pode assumir faces quase invisíveis — e nem por isso menos devastadoras. Um convite à reflexão foi feito no início do mês, em Porto Alegre, durante a 11ª jornada de saúde mental promovida pelo Centro de Estudos de Literatura e Psicanálise Cyro Martins (CelpCyro). A proposta foi alertar para as perversidades atuais, especialmente as silenciosas e que se alongam até virar parte da paisagem.

Presidente do CelpCyro, o psiquiatra Cláudio Meneghello Martins destaca que uma das maldades em andamento, e que parece não comover os brasileiros, é a epidemia de crack. Adverte que os 2,6 milhões de viciados no país — o cálculo é da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e inclui os dependentes de cocaína — rumam para um genocídio anunciado.

— A história mostrará esse exército de zumbis — diz Cláudio Martins, filho do escritor e psicanalista Cyro Martins (1908-1995).

Durante a II Guerra Mundial, ignorou-se o holocausto dos judeus nos campos de concentração nazistas, a humanidade demorou para notar a tragédia. Ressalvadas as proporções, Cláudio entende que miopia similar ocorre em relação aos acorrentados pelo crack. Pondera que os fantasmas do entorpecente vagando pelas cidades resultam de uma nova forma de maldade: a falta de assistência pública à saúde.

— São os maus-tratos da desassistência. Quando tiram o recurso público para a assistência, estão fazendo um maltrato geral — diz Cláudio, também diretor secretário da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).

Falta de freios legais permeia caso Bernardo

O pesquisador britânico Oliver Thomson sustenta, no livro A Assustadora História da Maldade, que os maiores crimes foram perpetrados pelo "poder oficial", quando tiranos subjugaram nações. Um exemplo estremecedor, na América do Sul, foram as ditaduras militares da década de 1970 — responsáveis por um dos períodos mais sombrios do século passado na avaliação de Alex Haslam, professor de psicologia social com atuação na Austrália, na Inglaterra e nos Estados Unidos (veja entrevista abaixo).

Assassinatos pontuais, executados por indivíduos anônimos, também têm o poder de aterrar uma comunidade. É o caso do menino Bernardo Boldrini, 11 anos, de Três Passos, no norte gaúcho, morto em abril, depois de ter sido dopado pela madrasta.

Para o ex-presidente da Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Fernando Lejderman, o homicídio de Bernardo é consequência de uma situação vigente no país: a falta de freios à maldade.
— Ele vinha sofrendo maus-tratos, a ponto de procurar a Justiça, mas nada foi feito e "a coisa ruim" continuou atuando em torno dele — diz o psiquiatra.

Sem as barreiras legais, torna-se mais difícil para as pessoas se acautelarem dos criminosos à espreita do menor descuido. O psiquiatra Lejderman avisa que indivíduos inclinados ao mal não sentem remorso nem temem por suas ações. Se as travas sociais (prevenção, tratamento, leis e punição) estão frouxas, como acontece no Brasil, eles ficam à solta. É por isso que bandidos convictos reincidem.
— A impunidade é o pior dos mundos para a sociedade. Se não acontece nada, continuam fazendo — lamenta.

Nos 13 anos em que atuou no Instituto Psiquiátrico Forense (IPF) de Porto Alegre, Luiz Carlos Illafont Coronel exumou o que chama de "lado obscuro da alma". Lidou com malvados de carteirinha e constatou que as drogas — álcool, cocaína, crack — abrem a jaula da perversidade.
Coronel lembra que o universitário que disparou uma submetralhadora durante uma sessão de cinema, em São Paulo, há 15 anos, ensaiou o homicídio várias vezes.
— Só ganhou coragem quando cheirou uns 30 papelotes de cocaína — conta.

Entrevista | Alex Haslam
"Somos todos capazes de fazer o mal"
Existe a crença de que verdugos a serviço de tiranias agem por obediência, como burocratas cumprindo ordens superiores. Pois o professor de psicologia social da universidade britânica de Exeter, Alex Haslam, 52 anos, contesta o que chama de "conformidade cega". Sustenta que os colaboradores de maldades, aqueles do trabalho sujo, podem discernir sobre o que estão fazendo. E mais: atuam acreditando que estão numa causa nobre. Confira a entrevista por e-mail de Haslam, também membro de universidades na Austrália e nos Estados Unidos. 

O senhor pesquisou que as pessoas, quando praticam maldades a serviço de tiranias, sabem o que estão fazendo. Não agem passivamente ou por obediência, mas por acreditarem que estão fazendo a coisa certa. Como é isso?
A chave é que, a fim de se envolver em atos tiranos com algum entusiasmo, os participantes precisam se identificar com a causa pela qual estão sendo mobilizados. Na experiência de Milgram (psicólogo norte-americano Stanley Milgram, morto em 1984), fica claro que a crença no valor de um projeto científico foi essencial para os participantes atenderem à vontade do cientista, e isso é algo que Milgram teve muito trabalho para cultivar. De maneira semelhante, em regimes fascistas, líderes precisam convencer a população de que seus atos promovem uma causa nobre (a pureza da identidade nacional, por exemplo). É essa crença de que estão fazendo o certo que encoraja as pessoas a fazerem o trabalho duro necessário para que esses regimes tenham sucesso.

O seu estudo é considerado inovador. O senhor sofreu contestações? De que espécie?
Há muitas pessoas que acreditam (e querem acreditar) que tirania e maldade são produtos de uma conformidade "cega" — como se os responsáveis fossem zumbis sem qualquer arbítrio e discernimento a respeito do que estão fazendo. De fato, tais alegações podem ser úteis quando queremos nos absolver da responsabilidade por ter feito coisas ruins. Ao enfrentar crenças confortantes como essas (que são comuns na psicologia social e na sociedade em geral), algumas pessoas nos veem como arruaceiros que estão criando problemas. Nossa visão é simplesmente que esses problemas precisam ser criados.

A maldade é inerente ao ser humano? Sempre irá ocorrer?
Claramente, existe uma propensão a isso. Somos todos capazes de fazer o mal, particularmente, se estivermos mobilizados por uma liderança malévola que nos faça acreditar que estamos fazendo algo nobre. Porém, ao mesmo tempo, todos temos o potencial de desafiar a malevolência e resistir a líderes malévolos. Então, não há sentido em apontar qual maldade ou perversidade é inevitável.

O que leva alguém a praticar o mal? Qual é o estopim?
É uma grande questão, mas temos descrito isso como parte de um processo em cinco passos. Ele revela como a tirania flui da (i) "identificação" (construção de um grupo interno); (ii) "exclusão" (definição de alvos externos ao grupo); (iii) "ameaça" (a representação desses alvos como ameaçadores à identidade do grupo); (iv) "virtude" (defesa do grupo como unicamente bom); e (v) "celebração" (adoção da ideia de erradicar o grupo externo como necessária para a defesa da virtude). Nesse modelo, não há um estopim específico — é um processo histórico cujo desenvolvimento vai se desdobrando. Certamente, podem existir eventos-chave que movam as pessoas para o mau caminho, mas cada trajetória é única.

O que refreia a ocorrência do mal em sociedade?
Creio que a evidência é que a resistência bem-sucedida sempre prospera onde as pessoas podem se reunir coletivamente para desafiar e resistir à opressão. Certamente, os opressores tomam medidas para tentar reprimir tais atividades, mas, no final, assim como grupos são essenciais para o desenvolvimento de uma tirania, também são centrais para derrubá-la. E, como mostra a história, e como Mahatma Gandhi notou, no fim, todas as tiranias são derrubadas.

Há civilizações ou épocas que se excederam na maldade?
Claramente, há períodos na história (os anos 1930 na Europa e a década de 1970 na América do Sul, por exemplo) em que as coisas estiveram bem escuras. É interessante notar que essas tiranias sempre estiveram incorporadas dentro de outras dinâmicas e, em particular, terceiros (como os Estados Unidos) tiveram um papel importante tanto em seu sucesso quanto na derrocada.

Que tipo de maldade assusta atualmente?
Dois tipos de danos têm uma capacidade especial para nos assustar: o dano feito a nós por outros e o dano que fazemos a outros, ou que é feito a outros em nosso nome. De maneira geral, somos muito mais conscientes daquele do que deste, porém ambos são muito assustadores.

Vivemos num mundo de maldade superior às anteriores?
Não creio que seja verdade. De fato, em muitos sentidos, estou convencido de que, com o tempo, os casos de brutalidade e barbárie (mesmo em fenômenos como a violência doméstica) estão em declínio. Em parte, esse é um produto da educação, mas é também produto do fato de que temos tendência a não viver em sociedades monolíticas e totalizantes nas quais apenas um número bastante limitado de pontos de vista ideológicos tem influência.
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Reportagem por Nilson Mariano
14/06/2014 | 08h04
Fonte: ZH online.

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