sexta-feira, 20 de junho de 2014

MAQUIAVEL ou doutor PANGLOSS?

 Carlos Eduardo Soares Gonçalves*
Quando ensino aos meus alunos do curso de introdução à economia que tarifas elevadas de importação são algo ruim para o desenvolvimento econômico, que elas prejudicam o consumidor e até mesmo produtores que usam insumos importados, e a partir daí explico os canais por meio dos quais o comércio internacional impulsiona o nível de renda por habitante dos países, invariavelmente um deles ergue o braço e pergunta, com semblante indignado: "Mas, professor, por que então existem essas tarifas, se elas são prejudiciais? Ninguém lá no governo sabe disso"?

De fato, por quê?

Note que podemos estender a lista: "Se inflação é ruim, por que nos assolou por tantos anos?" "Se subsídios distorcem a alocação de recursos, por que o governo dá subsídios para certos setores da economia?" "Se a reforma da previdência é tão urgente, por que não fazê-la logo?" Melhor parar por aqui e começar a oferecer respostas.

A ciência econômica por muito tempo se preocupou com questões do tipo: "Isso gera aquilo? Como?" Por exemplo, "comércio gera mais crescimento, através de quais canais?", "expansão monetária excessiva gera mesmo inflação?" ou "quando é ideal expandir gastos públicos?" A busca concentrava-se em entender o funcionamento da máquina da economia, seus defeitos e belezas, e averiguar como ela reagiria a mudanças na calibragem de certas alavancas.

Dos anos 1980 para cá, contudo, presenciamos também um vertiginoso - e bem-vindo - crescimento de perguntas associadas ao porquê de as alavancas serem acionadas do jeito que o são por seus operadores. É a pergunta do meu aluno - "Por que o governo impõe altas tarifas de importação?" - subindo de status no mundo acadêmico.

São duas as classes de resposta. A primeira, que os economistas não apreciam tanto, tem a ver com o desconhecimento puro e simples a respeito do jeito correto de a máquina econômica funcionar. E, claro, entendimento equivocado das engrenagens leva a ações de politica econômica equivocadas: as tais tarifas elevadas. A segunda classe de resposta é de viés mais maquiavélico, cínico, estratégico: não, não se trata de desconhecimento; os desvios do ideal se dão porque alguns agentes econômicos não têm interesse em que a máquina econômica funcione bem, ou funcione melhor, e lutam para mantê-la capenga.

Mexidas nas alavancas - alterações na politica econômica, reformas estruturais - raramente são indolores, e uma economia mais saudável após uma reforma pode vir ao custo de perdas para alguns participantes do jogo. Justamente esses alguns se reunirão para formar lobbies que impeçam as mudanças - essa tese é a favorecida pelos economistas modernos, a propósito. Por que alguns industriais não querem abertura da economia e integração comercial aqui em Pindorama? E por que agricultores nos Estados Unidos e na Europa resistem ao comércio livre com países como Brasil, e insistem em subsídios para seus produtos? Pura proteção de interesses particulares. Lobby - do tipo ruim.

Onde está a verdade? Como diria o príncipe Sidarta, no meio do caminho. Creio haver um pouco das duas coisas: lobbies maquiavélicos e ingenuidades/desconhecimentos panglossianos.

Convenhamos, não dá para comprar 100% a hipótese de que as pessoas - políticos e eleitores - entendem com clareza as nuanças teóricas que sugerem ser o comércio internacional algo necessariamente bom para a sociedade e que, portanto, desvios do ideal de tarifas baixas são pura e simplesmente causados por lobbies maquiavélicos. Por exemplo, meus alunos, que são pessoas de elevadíssimo capital humano, ao chegarem à universidade não pensam assim sobre o comércio. Acham que o produtor nacional precisa ser protegido. Por que, então, seria uma boa hipótese assumir que o eleitor mediano, que nunca estudou economia, entende a questão com clareza, mas no fim é impedido de ver sua politica econômica preferida implementada pela influência maligna de poderosos lobbies?

Mais ainda, olhando para a história do debate econômico no Brasil e na América Latina, para as raízes profundas que plantaram a tradição cepalina e suas congêneres, parece-me óbvio que a crença entortada de que para desenvolver uma economia é necessário fechá-la ao comércio, fartá-la de incentivos creditícios e praticar politicas fiscais incabíveis, era genuína. Não, não me tomem por Pangloss. As pessoas acreditavam nisso e, infelizmente, algumas ainda creem, em que pese toda evidência contrária. Vejam bem, não estou falando do lobista da indústria X, estou falando de cientistas políticos, elites intelectuais, e até mesmo de alguns economistas.

Aliás, note que o lobista da indústria X teria bem mais dificuldade de "convencer" certos congressistas sobre a importância de sua indústria receber proteção especial se a massa dos eleitores e formadores de opinião entendesse quem ganha e quem perde com essa medida. O congressista teria mais medo de assegurar favores para grupos de interesse específicos.

Mas não me entendam mal: é claro que o lobby de certos grupos é componente importante na explicação de distorções crassas de politica econômica. Eles têm força, de fato, pois interesses concentrados se defendem mais facilmente de mudanças que os atingem, têm maior capacidade de organizar um ataque a reformas que beneficiam a sociedade como um todo, mas que os prejudicam. Isso é fato. Ainda assim, insisto: a força desse canal de influência diminui à medida que as pessoas na rua passam a entender que as demandas dos lobistas lhes são prejudiciais, que elas perdem com tarifas à importação.

E por que as pessoas não se informam mais sobre esses importantes temas econômicos?

Porque cada um, individualmente, não tem incentivo a fazer isso. Infelizmente para o conjunto da sociedade, individualmente é racional permanecer irracional. Faça a conta do ponto de vista de um dado indivíduo, o cidadão X. Qual a consequência para ele, em termos de benefícios privados, do esforço de tentar entender o funcionamento da macroeconomia corretamente e não votar em políticos que fazem e falam barbeiragens nessa área? Esse indivíduo, sozinho, não faz verão: seu voto individual não muda os rumos da eleição, e sua opinião individual não afeta a plataforma do candidato à Presidência. Como gostam de dizer os economistas, um cidadão é atomístico nesse mundão de milhões de cidadãos. Para piorar, ele pode achar que defender publicamente teses liberais é algo socialmente complicado; mais legal é vestir camisa do Che e malhar os ricos e o capitalismo mundial. Ah, sim, se fosse apenas o cidadão X a escolher nossos governantes, ele não seria tão desleixado na análise, mas como o voto dele conta zero, ou melhor, conta 1/milhões de eleitores, ele não se importa tanto em fazer as contas certas.

Veja que esse mesmo indivíduo que vota num populista econômico muito provavelmente não pratica populismo econômico na sua casa: não gasta acima da sua restrição orçamentária indefinidamente, por exemplo. Por quê? Porque nesse caso sua ação irresponsável afetaria muito diretamente sua situação, seu bem-estar. Aí então ele se policia. Mas para que se policiar na hora de entender a macroeconomia, se o seu voto é apenas mais um em não sei quantos milhões?

Cada vez que penso nesse assunto, me convenço mais e mais da necessidade de ensinarmos noções básicas de economia já no segundo grau. Geraria externalidades positivas para toda a sociedade, pois em alguns anos teríamos politicas econômicas melhores.

Alguém do MEC me lê?
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*Carlos Eduardo Soares Gonçalves, professor titular de economia da FEA-USP e autor de "Economia Sem Truques" e "Sob a Lupa do Economista" (Campus), escreve neste espaço quinzenalmente
E-mail: cesg73@usp.br
Fonte: Valor Econômico online, 20/06/2014

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