sábado, 25 de outubro de 2014

MORFEU - O prazer das palavras

Cláudio Moreno*
 
Uma leitora escreve, hesitante: “Professor, não sei bem se é assunto para a coluna, mas deixo para o senhor decidir: sempre que meu sogro vai dormir, ele brinca dizendo que vai cair nos braços de Morfeu. No dicionário diz que este era o deus do Sono, mas eu li em algum lugar que o deus do Sono era outro. Se é um mito grego, não poderia ter mudado assim no mais, não é?”. Respondo sim duas vezes: sim, leitora, é assunto relativo a nosso idioma; sim, não podemos sair por aí mudando os mitos que a Antiguidade nos legou – ou, ao menos, não deveríamos fazê-lo.

Nossa língua, como todas as demais línguas do Ocidente, incorporou em seu léxico um grande número de alusões mitológicas, de referências a passagens bíblicas e de frases célebres dos grandes personagens históricos. Para entender o que escreveu, por exemplo, um Eça ou um Machado, é indispensável que o leitor saiba o que significam expressões como calcanhar de Aquiles, decisão salomônica ou presente grego. Por desconhecimento da tradição clássica, no entanto, algumas dessas alusões vão passando por um processo de deterioração quase imperceptível. Foi o que aconteceu com Morfeu, que passou a ser considerado, equivocamente, o deus do Sono.

Na verdade, o deus do Sono era Hypnos (chamado de Somnus, em Roma), representado em seu leito de ébano, no fundo escuro de uma caverna silenciosa, cercado de canteiros de papoula, a flor de onde se extrai o ópio (aliás, não é por acaso que os medicamentos que induzem o sono são chamados de hipnóticos). Ao redor dele dormem seus muitos filhos – os Oneiros (do mesmo radical de onírico), os sonhos diversos, que visitam os mortais adormecidos. De todos esses, como nos conta Ovídio, nas Metamorfoses, três são muito especiais: Morfeu, imitador da forma humana, que atua nos sonhos em que aparecem pessoas; Fôbetor, causador de pesadelos, que assume a forma de feras, aves monstruosas ou serpentes; e Fântasos, que atua nos sonhos em que aparecem árvores, rochedos ou qualquer outra coisa inanimada.

Talvez por ser o mais importante dos três, Morfeu foi pouco a pouco ocupando o lugar que a mitologia atribuía a Hypnos. No século 19, Castro Alves já fazia esta confusão: “– Ó sono! Ó Deus noctívago! Doce influência amiga! Gênio que a Grécia antiga chamava de Morfeu!”. O mesmo fez F.W. Setürmer, o farmacêutico alemão que isolou em 1803 o alcaloide ativo do ópio; pela sonolência que a substância causa, chamou-o de morphium, numa referência equivocada a Morfeu (mais tarde, por sugestão de Gay-Lussac, os franceses mudaram o nome para morfina, dando-lhe a terminação padrão de outros alcaloides, como a cafeína, a atropina e a cocaína).

Hoje esta expressão é considerada um lugar-comum, sendo empregada mais como brincadeira. E já que brincamos, quero lembrar aqui a inestimável contribuição trazida ao tema por Benedito Valadares, interventor de Minas, lendário por sua ignorância: certa feita, conversando com o escritor Cyro dos Anjos, seu amigo, anunciou, depois de um largo bocejo: “Vou entregar-me aos braços de Orfeu!”. Cyro, com delicadeza, corrigiu-o: “Não faltou um M, doutor Benedito?”. “Não; orfeom é instrumento musical, e eu estou é com sono mesmo...”. Nos braços de Morfeu
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* Professor. Colunista da ZH
Fonte: ZH online, 25/10/2014
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