sexta-feira, 17 de outubro de 2014

O SENTIDO DA EXISTÊNCIA, POR AUSTER

 Luís Antônio Giron*
 Reuters
 Auster: 
quem quiser conhecer seu processo de criação não vai encontrar em suas memórias. 
Ele parece não valorizar a própria obra

O escritor americano Paul Auster escreveu dois livros de memórias ao longo de seus 67 anos. Um aos 35, intitulado "A Invenção da Solidão", publicado em 1982. E outro aos 64: "Diário de Inverno", lançado recentemente no Brasil. Assim, Auster fez a revisão da vida sob dois momentos e pontos de vista distintos: o do fim da juventude e o do início da terceira idade.

A figura do pai assombra a primeira memória. A da mãe, a segunda. O pai esportista, truculento e malandro nos negócios é uma espécie de anti-herói que define por contraste a vocação de Auster - que, por causa dele, decidiu ser poeta e viajar para a França aos 20 anos. A personagem marcante de "Diário de Inverno" é a mãe glamourosa, mas arrastada pela mediocridade da vida doméstica, o que a levou a se separar e ser banida pela família. A mãe simboliza o fim dos sonhos no momento em que o autor adentra "o inverno da vida", como diz.

Em ambas as autobiografias quase não autorizadas, pois o narrador duvida frequentemente da própria competência e da validade de escrever memórias, Auster trata de se desvendar para si mesmo por meio da enumeração de fatos e lembranças que se embaralham. A personalidade melancólica do narrador se faz presente com reflexões sobre a finitude e a passagem do tempo - que, de tão óbvias, são comoventes. Se o leitor quiser conhecer o processo de criação do escritor, ou seja lá o que isso possa significar na vida de Auster, não vai encontrar em suas lembranças. É como se ele eliminasse a literatura da essência determinante de sua vida. Auster é um dos autores mais renomados da atualidade, com dezenas de romances e contos em que o acaso comparece como a única lei inquestionável.

Diferentemente de outros escritores, Auster parece não valorizar a sua obra ou talvez a esconda por pudor. Em "Diário de Inverno", usa a terceira pessoa para tentar operar um afastamento de si próprio. Mesmo evitando o "eu", Auster não consegue adquirir uma consciência autocrítica. Na ânsia de captar o movimento da própria vida, ele se debruça sobre todo e qualquer detalhe. E se faz perguntas que se repetem à medida que as páginas se acumulam: "Quantas vezes você deu topadas, esmagou os dedos de cabeçadas? Quantas vezes tropeçou, escorregou e caiu? Quantas vezes piscou? Quantos passos deu? Quantas horas passou com a caneta na mão? Quantos beijos você deu e recebeu?"

São as perguntas retóricas, porque a vida, segundo ele, não tem lá muito sentido. Nascido em Nova Jersey em 1947 em uma família de classe média, Auster tenta levantar tudo o que fez na vida, em especial as atividades aparentemente mais irrelevantes na trajetória de um escritor de sucesso que ele é. Lembra-se dos 21 endereços fixos onde residiu, as dezenas de tombos que levou na infância, as doenças venéreas que contraiu e, claro, as duas mulheres que amou de verdade.

Mesmo com tanto decoro, Auster deixa escapar uma confissão que pode explicar seus romances recentes, "Viagens ao Scriptorium" (2007) e "Homem no Escuro" (2008), povoados de personagens desesperados e depressivos, atormentados pela memória e pela falta dela. Em 2002, quando sua mãe morreu, ele começou a ter ataques de pânico.

Para dar uma ideia das sensações que tem quando entra nesse estado, ele cita o personagem Frank Bigelow, do filme noir "Com os Dias Contados" (D.O.A., abreviatura da expressão policial "death on arrival" para descrever corpos recém-chegados ao necrotério), de 1950, dirigido por Rudolph Matté. Frank, interpretado por Edmond O'Brien, pode ser descrito como um herói-vítima. Sente-se mal e erra perdido pelas ruas até que chega a um hospital. O médico que o atende informa que ele foi assassinado. Ou melhor, está sendo assassinado por ingestão de um veneno que mata lentamente. Enquanto morre, Bigelow sai em busca dos culpados pela própria morte. E assim, espelhado nesse personagem, Auster investiga a si mesmo.

De que material é feita a vida? Quem é você? Quem você não é? São mais questões que Auster se coloca a si mesmo, sem responder a elas. Dessa forma, o leitor conhece os detalhes ínfimos e íntimos da vida de um grande escritor. E Paul Auster ensina que a vida de qualquer um de nós, inclusive a de um grande escritor, também é feita de banalidades.

Diário de Inverno

Paul Auster. Trad.: Paulo Henriques Britto. 
Companhia das Letras, 216 págs.,
 R$ 44 (papel) e R$ 31 (e-book)
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* Jornalista e crítico de cultura. 
Fonte: Valor Econômico online, 17/10/2014

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