domingo, 9 de novembro de 2014

JANELAS INDISCRETAS

Na cola de Orwell e Huxley, ‘O círculo’, novo romance de Dave Eggers, imagina um mundo transparente. Mas não já vivemos nele?

Passear nu pela rua talvez seja um pesadelo para muitos – mas está mais perto da realidade do que se imagina. No romance O Círculo, Dave Eggers cria um mundo em que a transparência é total. Ali, é impossível ter segredos. Ali, segredos são mentiras. Compartilhar é cuidar. Privacidade é roubo.
Caso tenha se lembrado dos slogans de George Orwell, está em casa: embora narrado com leveza, O Círculo é uma distopia tão terrível quanto 1984, porque também usa a linguagem como centro catalisador da opressão. Como você se lembra, Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão e Ignorância é Força são os lemas que movem a realidade de 1984 (publicado em 1948), em que todos os habitantes são vigiados por teletelas e governados pelo Grande Irmão. A sacada de Eggers, no entanto, está em temperar Orwell com o Aldous Huxley de Admirável mundo novo (de 1932). Ao contrário da horrorosa realidade de Orwell (que bebeu muito no modo como Kafka enxergava o totalitarismo), Huxley imaginou uma distopia invertida – em que todos são felizes, geniais, lindos e poderosos. E é o que faz Eggers neste romance, a começar pela primeira linha: “Meu Deus, pensou Mae. É o paraíso”. Ali, a transparência total não é imposta: é desejada.

O paraíso funciona em uma cidade da Califórnia, tal como a maioria das empresas que nos vigiam – ou que usamos para vigiar os outros. O Círculo cria gadgets, como a microcâmera SeeChange, poderosa, barata e de bateria quase ilimitada: as pessoas a espalham por todo o planeta (pense nos smartphones da Apple); lança-se a desafios quase inverossímeis, como contar os grãos de areia do Saara (tal como o Google Street View está documentando o norte africano); e monetiza as postagens dos usuários de sua rede social, aumentando os lucros do próprio negócio, ao sugerir que as pessoas espontaneamente trabalhem de graça – ao mesmo tempo que monitora seus hábitos de consumo (oi, Mark Zuckerberg). Em suma, o Círculo reúne as mais poderosas corporações do Vale do Silício, as startups mais arrojadas e as mentes mais empreendedoras. O Círculo é animado pela elite planetária, trabalhar lá é como estudar em Oxford ou Harvard; não por acaso, a empresa também é chamada de câmpus e oferece aos funcionários mais esforçados alojamentos confortáveis – porque uma hora é natural que alguém pergunte: “Mas pra que vou pra casa mesmo?”. No Círculo, as fronteiras entre público e privado são destinadas a desaparecer.

VOZ DO BIG BROTHER
A protagonista Mae é uma garota de vinte e poucos anos que entra no Círculo tanto por brilhantismo quanto por ser amiga de Annie, que integra o grupo dos 40 profissionais mais ambiciosos da cidade. Doce, ingênua, esforçada, caipira e insegura, Mae é o espelho inverso de Annie – rica, ambiciosa, sarcástica, autocrática e aristocrática. Annie é tudo o que Mae quer ser e, para isso, não hesitará em dobrar sua psicologia para o avesso. Lá pelo meio do romance, Mae torna-se a primeira pessoa “transparente” do mundo: cobaia do Círculo, passa a usar uma SeeChange em um pingente no pescoço e vira uma supercelebridade global. O pingente é um computador vestível (termo inventado pelo cientista Steve Mann, hoje aplicado tanto ao Google Glass quanto ao iWatch, relógio da Apple) que transmite ao público tudo o que ela está fazendo. Tudo mesmo.

O esquematismo desta ficção científica especulativa (subgênero em que a realidade imediata é exagerada e ambientada em futuro próximo) é seu trunfo e seu problema. Todo narrado na terceira pessoa, o romance de Eggers é vítima de sua perspectiva. A voz neutra do autor é o Big Brother particular que “transmite” o livro; neste texto transparente, não há vestígio de ironia. Por sabermos tudo o que se passa no corpo e na mente de Mae, não guardamos suficiente distância de sua psicologia — e ela se torna uma personagem previsível, opaca, oca. Portanto, longe de se aproximar de visionários como Huxley e Orwell, O Círculo parece mais um documentário realista do mundo que já vivemos.



Há uma cena chocante em que, sem querer, com a microcâmera no pescoço, Mae publica um vídeo pornô. Mas casais já registram a si mesmos em momentos pós-coito no Instagram e sobem suas transas no PornoTube: é questão de tempo compartilharem carícias no Facebook ou gravarem pornôs caseiros para espantarem dos amigos o tédio dos domingos (na verdade, já deve ter gente fazendo isso, e não falo da sextape de Kim Kardashian e Kanye West). Em um capítulo, assistimos a uma morte produzida ao vivo. Mas quantos snuff movies não estão sendo divulgados nos portais neste exato instante? Para quem gosta de espiar as câmeras espalhadas pela cidade, logo chegará o momento em que será possível assistir a atropelamentos, homicídios e outros crimes ao vivo (J.G. Ballard adoraria). A morte, este tabu que guardávamos em segredo, nunca foi tão pública – ninguém mais liga se você fizer uma selfie em um velório ou enterro. Em outro momento, o Círculo sugere que todos os políticos fiquem “transparentes”, afinal de contas não devem ter nada a esconder, e que todas as pessoas votem usando o perfil de sua rede social. Mas, nas últimas eleições, notamos o quão espontaneamente os eleitores divulgaram nas redes seus votos, antes secretos, ou mesmo clicaram e instagramaram suas urnas. Não deve demorar muito para que a Justiça Eleitoral seja terceirizada para o Facebook.

GAIOLAS DE VIDRO

Em 1921, o escritor russo Eugene Zamiatin descreveu o Estado Único, a sociedade transparente do romance distópico Nós. Zamiatin viveu a Revolução de Outubro e tinha muita imaginação para o totalitarismo emergente na URSS: “Derrubaremos todas as paredes para deixar a aragem renovadora soprar livremente de um extremo a outro da Terra”. No Estado Único, os prédios são transparentes e os moradores só têm permissão para fechar cortinas durante os encontros íntimos — no que lembram tanto a gaiola de vidro onde Billy Pilgrim é mantido pelos tralfamadorianos de Matadouro 5, de Kurt Vonnegut, quanto o Panóptico, aquele centro penitenciário ideal desenhado pelo filósofo Jeremy Bentham em 1785, cuja arquitetura permite ao vigilante, que permanece em um centro invisível, observar todos os prisioneiros sem que estes possam saber se estão ou não sendo observados.

A grande arte sussurra que a transparência total 
poderá nos tornar invisíveis – mas só chegando 
lá é que poderemos ver essa realidade 
com nossos próprios olhos.

Vários edifícios do Círculo têm paredes de vidro. Evidentemente, tanto Eggers quanto Vonnegut, Orwell e Huxley beberam no texto fundador de Zamiatin para escrever suas distopias. Afinal, não só para eles como também para gente como Ray Bradbury (em Fahreinheit 451, de 1953), J.G. Ballard (em The Atrocity Exhibition, de 1970, nunca traduzido no Brasil) e Margaret Atwood (em O Conto da Aia, de 1985), a falta de privacidade é o maior pesadelo em uma distopia totalitária.

Outro livro contemporâneo sobre a vida sem privacidade é Meatspace, de Nikesh Shukla (lançado em 2014, sem tradução no Brasil), que segue a vida de um escritor solitário cujo único escape é o submundo da internet. “A primeira e a última coisa que faço todo dia”, começa o livro, “é ver o que os estranhos estão falando de mim”.

TERRITÓRIO DA INTIMIDADE

A polícia do pensamento de Orwell, exagerada na autoexposição de Eggers, é magnificada no conto The Minority Report, de Philip K. Dick (1956), que deu origem ao filme homônimo de Steven Spielberg. Ali, as câmeras da polícia – através de agentes telepatas chamados precogs – devassam a mente de todos os seres humanos, possibilitando identificar os criminosos antes mesmo que eles venham a cometer crimes.

O já citado clássico da invasão da privacidade The Atrocity Exhibition é uma coletânea de contos que descrevem como os meios de comunicação em massa invadem a mente dos indivíduos. Sofrendo de uma crise nervosa, o protagonista, um médico psicótico, não dissocia os episódios de sua vida – quando tenta matar a própria mulher – de eventos da “vida real”, como a corrida espacial e o assassinato de Kennedy. A ideia de Ballard é que a contaminação da mente pelo hiper-real exposto na mídia acabe por destruir a ideia de um self privado, dissolvendo os limites entre indivíduo e sociedade.

The Private Life – Why We Remain in the Dark (2013, sem tradução no Brasil), do crítico literário e psicanalista Josh Cohen, é um ensaio sobre a natureza mutante da privacidade na era do Facebook e das supercelebridades. Indo de Freud a Lydia Davis, Cohen fala da desesperada batalha da cultura dominante contra o self privado. Seu argumento é que tanto a fome por fofocas quanto as ineficazes tentativas dos mais ricos de proteger sua privacidade têm tornado a vida privada uma fonte de vergonha.

No epílogo do clássico cinematográfico La Dolce Vita, de Fellini, Marcello – já transformado de jornalista angustiado, com pretensão a ser escritor, em um publicitário amoral – observa uma enorme arraia ser capturada por pescadores. Ele fica fascinado ao notar que, mesmo morto, o animal ainda parece observá-lo. No entanto, ao ser chamado por uma linda menina na praia – ela o reconhece do tempo em que tentou ser escritor –, não consegue ouvir o que ela diz e vai embora. Na praia felliniana, a luz é quase branca. Superexposto à luz ofuscante, Marcello não consegue mais ver a beleza da menina nem sequer reconhecer a si mesmo. A grande arte sussurra que a transparência total poderá nos tornar invisíveis – mas só chegando lá é que poderemos ver essa realidade com nossos próprios olhos.
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Por: Ronaldo Bressane   /   05/11/2014
ILUSTRAÇÕES MARIO BAG
Fonte: Revista Cultura on line.

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