domingo, 4 de janeiro de 2015

Mania de pequeneza

 Paulo Gleich*
 
Começou lá pelos dois anos, aquela época em que a conquista de alguma firmeza sobre as pernas e de mais destreza com as palavras leva as crianças a se acharem gente grande, mesmo ainda não sendo. Tinha opiniões sólidas e convictas sobre tudo, e delas não arredava pé. Exibia orgulhoso para os adultos suas pequenas façanhas corporais, como se merecessem medalhas olímpicas.

Suas bravatas inocentes encontravam a admiração cúmplice de alguns, porém se chocavam com a puritana modéstia de seus pais, que tratavam de puxá-lo para a dura realidade. Sem ainda bem entendê-la, conheceu a expressão que lhe era repetida: que mania de grandeza! O que supostamente deveria aproximá-lo da realidade e de seu verdadeiro tamanho funcionava, porém, como uma puxada de tapete. A exibição de seus recém-conquistados poderes não impressionava – pelo contrário, incomodava – aqueles que mais buscava impressionar: os pais.

Os repetidos fracassos nessa empreitada acabaram levando-o a guardar em algum recôndito da alma sua onipotência infantil, para que não se quebrasse de vez. Em seu lugar, foi adotando, pouco a pouco, outra mania: a de pequeneza. Nunca era bom o suficiente, sempre havia um problema, o fracasso ocupou o lugar do sucesso em sua mira. Parecia ser esta a forma de obter o almejado amor dos pais: mostrar-se fraco, pequeno, indigno de expor seus atributos, reais ou fantasiados.

À medida que crescia, pagava, sem se dar conta, os juros da alienação de sua incipiente potência. Tirava boas notas na escola, mas nunca era suficiente: sempre havia uma nota não tão boa que lhe confirmava seu já antecipado fracasso. Sofria com isso, sem se dar conta que assim correspondia, inconscientemente, ao que imaginava ser a condição para ser amado. Seu amor-próprio moldara-se à imagem e semelhança do amor imaginado dos pais, condicionado a uma humildade que maquiava uma crescente autodepreciação.

Pouco ousou ir atrás de coisas que despertavam um estranho comichão que às vezes sentia e que fazia seus olhos brilharem, pois fazer isso era cutucar a adormecida potência transformada em mania de grandeza. Esta, às vezes, chegava a sair da jaula: sentia-se grande e forte, mas face ao primeiro impasse cambaleava e caía, comprovando mais uma vez que era o chão o seu lugar. Pouco a pouco, foi cavando um buraco do qual mal conseguia espiar para fora.

Adulto, ressentia-se do sucesso e do orgulho alheios, atuando como um habilidoso promotor que desmontava qualquer tese de defesa dos réus, condenados já de antemão em seu rigoroso tribunal. Sem se dar conta, aplicava ao mundo, com severidade ainda maior que a de seus pais, a máxima de que qualquer demonstração de orgulho e amor-próprio é pecado capital a ser expiado para evitar um mal maior, que nem sabia bem qual era. Ignorava, porém, que sua posição apenas incomodava e afastava de si os outros. O maior prejudicado era ele mesmo, sobre quem recaía a mesma virulência condenatória.

A superioridade moral que atribuía à afirmação de sua insignificância e de suas falhas acabaram fazendo de sua mania de pequeneza uma nova mania de grandeza, esta sim imune às puxadas de tapete – porque era delas que se alimentava. Seu ferido narcisismo infantil acabou dando lugar a outro, bastante mais sólido, bastante mais nocivo que a ingênua megalomania daqueles tempos.

Em algum momento, a dor e a solidão tornaram-se tão insuportáveis que caiu de vez. Começou a suspeitar que talvez houvesse algo errado com a ficção que havia montado para dar sentido ao mundo e à vida. Com o esforço, o tempo e a paciência que isso requer, refez a trajetória que havia trilhado até então, revisitando aqueles momentos que pareciam esquecidos no passado nos quais sua nascente potência havia recuado após sofrer duros golpes. Acusou seus pais por seu infortúnio, mas depois percebeu que também eles haviam sofrido de forma semelhante. Perdoou a eles e a si mesmo, o que lhe permitiu ser mais benevolente com os outros, mas sobretudo consigo mesmo. Segue tentando descobrir seu real tamanho, mas já sabe que não é nem tão grande, nem tão pequeno.

O bombardeio constante de mensagens para tentar elevar nossa autoestima talvez diga de como fracassamos com frequência nessa tarefa. Se somos cegamente apaixonados por nós mesmos, não permitimos a aproximação do outro e caímos com qualquer tropeço; se nos vemos muito pequenos, não acreditamos que merecemos crescer e aparecer. Em O Filho de Mil Homens, Valter Hugo Mãe escreveu: “ser o que se pode é a felicidade”. Que possamos, neste ano que inicia, não recuar do trabalho de tentar ser quem se pode: nem tão grandes e onipotentes, nem tão pequenos e impotentes.
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* PAULO GLEICH É JORNALISTA E PSICANALISTA. 

Fonte: ZH online, 04/01/2015

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