domingo, 4 de janeiro de 2015

Recenseamento

Luis Fernando Veríssimo*

No samba do Assis Valente Recenseamento, o “agente recenseador” vai ao morro e esmiúça a vida da cantora. Quando vê a sua mão sem aliança, encara para a criança que dorme no chão e pergunta se o seu moreno é decente, do batente ou da folia. Um agente recenseador moderno esmiúça a vida dos cidadãos até um certo ponto, e é inimaginável que se meta em pormenores como o do samba. Não lhe interessa se o moreno da cidadã é decente, do batente ou da folia. Na minha opinião, talvez devesse voltar a interessar. Olha aí, IBGE.

– Notei que a senhora não usa aliança...

– Não sou casada.

– E essa criança?

– Tenho um moreno.

– E ele é decente?

– Como assim?

– É do batente ou da folia?

– Precisa responder isso?

– É obrigatório. Olha aqui os espaços no questionário: “Batente” ou “Folia”. Preciso preencher um.

– Então bota aí “Batente”, mas não muito.

Entende, IBGE? “Batente” ou “Folia” representaria mais do que apenas estar empregado ou preferir a gandaia. Ser do “Batente” significaria ser um cidadão honesto, trabalhador, bom provedor da família. Em suma, decente. Já a categoria “Folia” englobaria todas as maneiras possíveis de ser o oposto de “Batente”. Folia, no caso, não seria sinônimo só de festa, de Carnaval o ano inteiro. Incluiria corrupção, pequenas e grandes falcatruas, mau caráter em geral...

Claro, “Batente” e “Folia” não seriam categorias estanques. Um cidadão pode ser do “Batente” mas estar desempregado. Ou pode estar empregado, trazendo dinheiro pra casa, ajudando a cidadã a criar as crianças, mas sendo, disfarçadamente, da “Folia” também. E muitos recenseados que se declaram decentes podem estar mentindo. Mas acho que, mesmo imperfeito, um recenseamento bisbilhoteiro como o do samba nos daria uma boa ideia do caráter da maioria do povo brasileiro. Os do “Batente” superariam os da “Folia”, longe.

Na letra do Assis Valente, a cantora diz: “Fiquei pensando e comecei a descrever tudo, tudo de valor que o meu Brasil me deu. Um céu azul, um Pão de Açúcar sem farelo, um pano verde e amarelo, tudo isso é meu. Tem feriado que pra mim vale fortuna, a Retirada da Laguna vale um cabedal. Tem Pernambuco, tem São Paulo, tem Bahia, um conjunto de harmonia que não tem rival”. Mas o samba também diz que na casa da cidadã e seu moreno “tem um pandeiro, tem cuíca e tamborim, tem reco-reco, cavaquinho e um violão”. Quer dizer, folia no bom sentido.
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* Jornalista. Escritor. Cronista da ZH
Fonte: ZH online, 04/01/2015
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